No estúdio do fotógrafo:
Um estudo da (auto-)representação de negros livres e escravos no Brasil da segunda metade do século XIX - I

Sandra Sofia Machado Koutsoukos*

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O tema:

Alguns dos primeiros documentos iconográficos em que aparece a família negra no Brasil, em sua labuta ou descanso, são os trabalhos de artistas e/ou viajantes estrangeiros como Frans Post, Joaquim Cândido Guillobel, Jean Baptiste Debret, Maurice Rugendas, Thomas Ender etc., para mencionar apenas algumas das principais fontes – “parafotográficas”, como bem chamou-os Gilberto Freyre, pela pretensão de exatidão.1 Os artistas/viajantes/estrangeiros retrataram os escravos trabalhando, descansando, cantando, dançando, casando, fumando, apanhando – registraram o orgulho e a humilhação dos negros; registraram o que era, para eles, o pitoresco, o “exótico”, e nos legaram documentos iconográficos preciosos do nosso passado. Até que chegou aqui a notícia oficial da invenção de Daguerre; a “tal” que relatava, para espanto geral, ser possível a fixação de imagens “sem palheta nem lápis, sem preceitos artísticos nem dispêndio de horas e dias, (...), sem mover a mão, sem abrir os olhos e até dormitando, (...)”.2 O daguerreótipo era um sucesso, pois proporcionava uma representação “precisa” da realidade.

Entretanto, a popularização da fotografia se deu quando da invenção da impressão da imagem em papel, mais barata, e da criação do negativo e da possibilidade de se obter diversas cópias de uma mesma fotografia. E a novidade, o retrato de corpo inteiro (popularizado por Adolphe Eugène Disdéri na França), logo atravessou o oceano e se disseminou pelo Brasil na década de 1860. Os formatos cabinet e carte-de-visite (este 6 x 9,5cm), que retratavam os personagens em plano médio, foram os mais procurados para representar as famílias ou grupos. O avanço da técnica fotográfica diminuiu rapidamente o tempo de exposição dos modelos e o valor das imagens; em pouco tempo, pessoas dos grupos sociais menos favorecidos também se viram em condições de “construir” a sua auto-representação, de se ter (se ver) retratadas da forma como queriam ser vistas e lembradas. A fotografia se tornara uma técnica a serviço de todos, um objeto de desejo que garantia a quem quisesse a possibilidade de possuir imagens e paisagens do mundo, imagens de amigos e parentes, imagens de conhecidos e de figuras importantes admiradas, e, sobretudo, a própria imagem.

O ato de ir ao estúdio do fotógrafo tornou-se rapidamente uma demanda do status. E a pose virou o símbolo da fotografia no século XIX. Antes de entrar no “salão da pose”, o cliente aguardava no “salão de espera”, onde observava as fotos emolduradas e dispostas pelas paredes, folheava os álbuns demonstrativos e conversava com o profissional para, enfim, captar a melhor pose, expressão, cenário e os melhores acessórios que caberiam à sua idéia de auto-representação. Os detalhes usados em uma cena constituem uma linguagem simbólica que torna inteligível a idéia que se queria passar. O ateliê/estúdio funcionava como camarim e palco, onde o fotógrafo era o diretor, e o cliente, o personagem. Roland Barthes comentou, em A câmara clara:

“Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte”.3

E este estudo tem como tema investigar a possibilidade de pensar negros livres e escravos também como sujeitos do ato fotográfico.

Fotos de negros livres:

Gilberto Freyre escreveu, em Sobrados e Mucambos, sobre a popularização dos símbolos de distinção, como a bengala, o chapéu de sol, o guarda-chuva, a cartola e a luva, e o folclore que se criara em torno dessas insígnias, que, por muito tempo, eram de classe e de raça senhoris. Freyre ressaltou a reação do “povo” aos primeiros negros livres que apareceram em público vestidos como os brancos da sociedade: vaiaram-nos, gritaram “fora preto, fora carvão”, assobiaram e espirraram (uso português para insultar os negros).4 Além do preconceito à sua cor, foram vários outros os problemas que os novos cidadãos livres enfrentaram: problemas econômicos (de trabalho, de sobrevivência e de moradia), competição com a mão-de-obra livre, a família (ou grupo) muitas vezes dispersa(o) após sucessivas vendas etc. Mas eles contariam com as cumplicidades e solidariedades do corpo social a que pertenciam, e procurando, às vezes, comportar-se como a sociedade branca, tentavam também por ela serem aceitos.5

O momento histórico exigia que além de ser livre, o liberto parecesse livre, para que ele conseguisse se esquivar dos estigmas da escravidão – não sendo esse um caso de aculturação, mas de estratégia de se fazer aceito e de sobrevivência.

foto1Selecionei para análise três fotos de negros livres: A foto 1 (de Militão Augusto de Azevedo, S.P., 1879)6 é o retrato de um casal de negros livres, que tentava “trilhar” seu caminho dentro daquela sociedade branca, exigente e racista. O casal fez-se fotografar como os casais brancos da sociedade, vestidos e penteados à moda européia. A mulher exibe a sua sombrinha e o homem o seu chapéu e, mais, ele adiantou um pouco o pé esquerdo e mostra, como quem não quer nada, seu sapato de pessoa livre. Nada na sua roupa ou penteado os liga à sua origem africana; a única coisa que nos remete à sua origem, que os “denuncia”, é a sua cor. Não tenho indicação se as roupas lhes pertenciam. É possível que não. Muitos estúdios possuíam vestes para emprestar aos clientes; vestes que bem lhes serviriam, assim como os outros recursos da ambientação escolhida, para se fazer perenizar demonstrando abastança e/ou dignidade.

foto2_3Nas fotos 2 e 3 (juntas; e sem referências)7 temos dois homens com paletós de corte europeu, coletes, relógios de corrente presos aos coletes, guarda-chuvas, chapéu (apenas o da esquerda), sapatos lustrosos e cabelos partidos e penteados para o lado. Um se apóia a um gradil e o outro a uma coluna; um levanta o rosto com um certo orgulho e olha para um ponto à direita do fotógrafo, o outro encara com seriedade o profissional. Um é negro, o outro é branco; os dois são livres.

foto4A foto 4 (de Carneiro & Gaspar, R.J., s/d)8 é o retrato de D. Marcellina, a qual era uma ex-escrava e ex-mucama, que havia sido libertada pelo seu senhor, seu Antônio, de quem ela era amante. E nessa foto, como em tantas outras da época, aparece uma mulher vestida e penteada à moda européia, com seu leque. O leque era um detalhe importante, pois era um símbolo de distinção e frescura, cujo uso e manejamento corretos, através de um ritmo elaborado de gestos, denotavam que a elegante era afeita aos usos da sociedade. Para compor o cenário da foto, o fotógrafo escolheu uma ambientação rústica (também em moda no período). Tal retrato de D. Marcellina foi anexado ao processo de pedido de anulação de casamento (de 1887) movido pela esposa branca de seu Antônio, que o acusava de estar liquidando com a fortuna do casal, para bem manter a amante negra na Corte. E esse cartão-de-visita foi uma foto que ela possivelmente tirou para se ver/ter retratada na nova condição de mulher livre e poder presentear seus parentes e conhecidos (e seu amante). Essa foto representaria quase um passaporte para ressaltar o status de sua nova condição. Porém, tal retrato foi parar também nas mãos da esposa traída de seu Antônio e a fez agonizar de raiva da rival... Curioso é o olhar arregalado de D. Marcellina, um tanto assustado; teria sido aquela, quase com certeza, a primeira vez que a ex-escrava avistava um fotógrafo com a sua parafernália impressionante...

Nas fotos de negros livres, estes trataram de se fazer representar seguindo o padrão europeu da moda vigente na sociedade no período. Em tais fotos, não há nada que ligue as figuras representadas a algum tipo de trabalho ou profissão; as marcas de sua etnia africana (ou marcas de posse, de torturas, de doenças etc) caso houvessem, não aparecem; são fotos em que os estigmas da escravidão foram propositalmente ocultados. Vejamos agora as fotos de escravos.


* Sandra S. M. Koutsoukos é doutoranda em Multimeios, no Instituto de Artes da Unicamp.


1 FREYRE, Gilberto, VASQUEZ, Pedro & LEON, Fernando Ponce de. O retrato brasileiro; fotografias da Coleção Francisco Rodrigues 1840-1920. Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Arte/Núcleo de Fotografia e Fundação Joaquim Nabuco/Departamento de Iconografia, 1983, p.18.

2 Em MAUAD, Ana Maria. “Imagem e auto-imagem no Segundo Reinado”, em ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.), História da vida privada no Brasil 2; Império: a corte e a modernidade nacional. S.P., Cia. das Letras, 1997, pp.188-189.

3 BARTHES, Rolan. A câmara clara. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 1984, 5a. Impressão, p.27.

4 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo/Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1951, 2a. edição, tomo II, p.708.

5 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. S.P., Ed. Brasiliense, 1982, pp.205-206.

6 Em MAUAD, Ana Maria, op.cit., p.206.

7 Em SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas; a moda no século dezenove. S.P., Cia. das Letras, 1987, p.124.

8 Em SLENES, Robert W. “Escravos, cartórios e desburocratização: o que Rui Barbosa não queimou será destruído agora?”. Na Revista Brasileira de História, n. 10, S.P., ANPHU/ Marco Zero, março/agosto de 1985, p.175. Slenes, o autor do texto, afirmou não ter encontrado no processo dados explícitos de que, à época da foto, D. Marcellina já fosse uma liberta; sendo o mais provável que sim; risco que resolvi assumir.

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