O caderno dos lamentos e das recriminações
Pedro Karp Vasquez
Tomando como ponto de partida as premissas expostas por André Malraux em Le Musée imaginaire, em 1947, o autor combinou-as com os modernos instrumentos de disponibilização gratuita de imagens da Web para elaborar um exercício de escrita e edição de imagens ilustrativo das novas possibilidades criativas atualmente oferecidas pelas tecnologias de base digital.
Taking as a starting point the assumptions exposed by André Malraux in Le Musée imaginaire, in 1947, the author combined them with modern tools of freely distribution of images at the Web to produce a writing exercise and picture editing, illustrative of some of the new creative trends possibilities currently offered by digital-based technologies.
O conceito de museu imaginário, tal como elaborado por André Malraux entre 1935 e 1947 (data de publicação do livro Le Musée imaginaire), parte do princípio de que o repertório de imagens, sagradas ou não, decorrentes do progresso das técnicas fotográficas e dos processos de impressão, em combinação com a expansão das viagens internacionais, possibilitava finalmente a apreensão do legado cultural da humanidade como um todo.
Facultava também, a cada ser humano, a possibilidade de ser o curador de seu pequeno museu imaginário, reunindo exclusivamente as obras de sua preferência com total autonomia das restrições do bom gosto e da erudição impostas pelo cânone oficial tal como espelhado nos grandes museus nacionais.
Por outro lado hoje, com o advento da internet e com a disponibilização contínua de milhares de imagens a cada novo dia, boa parte das quais veiculadas em sistema de free content, por intermédio de mecanismos como o Creative Commons, todos temos a possibilidade de constituir rápida e gratuitamente nossos exclusivos museus imaginários, com obras de boa qualidade das mais variadas procedências, tal como preconizado pelo exemplo malrauxriano.
Tirando partido dessa oportunidade, reuni um conjunto de fotografias disponibilizadas pelo site Morgue File Free Photo Archive, que afirma ser feito by creatives for creatives, com a missão de “fornecer gratuitamente imagens de referência para uso em todos os diferentes empreendimentos criativos”. Portanto, graças ao generoso empenho dos contribuintes do www.morguefile.com/archive parti do primeiro conjunto selecionado para uma seleção final de catorze imagens (o mesmo número de etapas da Via Crucis) para com elas compor O caderno dos lamentos e das recriminações, em que uma jovem não nomeada elabora um inventário das suas frustrações amorosas e de seus anseios para o futuro.
Assim procedendo, evitei um enfoque analítico ou historicista a respeito das ideias expostas por Malraux em Le Musée imaginaire, buscando emular seu exemplo na tentativa de fazer uma reflexão criativa e não teórica acerca dessa sua obra invulgar.
Fora da área de cobertura
Nos primeiros tempos fui fraca e tentei ligar algumas vezes. Acabava desistindo sempre, só para fazer nova tentativa em seguida.
Sentia-me cada vez mais idiota, imaginando você com o celular na mão, apressando-se em recusar a chamada. Só que você nunca recusou, apenas não atendia, deixando o telefone tocar até o fim, quando surge aquela mensagem recomendando que deixemos uma mensagem. O que nunca fiz.
Você nunca atendeu. Eu nunca deixei uma mensagem.
Mascarado
Você costumava ser a alma da festa, emendando uma piada na outra e fazendo todo mundo mijar de tanto rir.
Hoje eu não acho você tão engraçado assim, e aquela forma ardilosa de engrenar uma piada na outra me parece um truque barato para enganar trouxas. “Esse mesmo português, certa vez, foi...” - dizia você e aqueles babaquaras ficavam impressionados com esse ardil e com sua memória prodigiosa.
De que adianta tanta memória, se só serve para lembrar besteira?
E aqui vai um recado:
- Deixe os portugueses em paz! Você sabe muito bem que meu avô Bernardo era português!
Mensagens
Mil vezes ensaiei escrever, abrindo meu coração e colocando tudo em pratos limpos, como se diz.
Contudo,
não consegui escrever uma linha sequer. Tudo o que fiz foi amassar papel. No
final de contas, pensei: melhor desperdiçar papel que desperdiçar mais palavras
com você.
Ouro de tolo
Separando as roupas que você deixou para trás e me encarregou de doar, encontrei algumas moedinhas americanas no bolso de um blazer.
“Pennies and dimes, nickels and quarters.” Troco miúdo enfim, restos impossíveis de gastar até no aeroporto, nem mesmo com balas ou chicletes. Ouro de tolo, que não serve nem mesmo para resgatar a memória da viagem a Nova York, em que acreditei que aquela morna felicidade poderia durar para sempre.
O muro
A jornada que começamos juntos, e que eu imaginava longa e feliz, acabou de súbito diante de um muro. Um muro alto, aparentemente interminável e intransponível, diante do qual estou parada.
Parada e travada.
Rastro perdido
Durante muito tempo achei que nosso amor era como pegadas na areia da praia, que o mar não seria capaz de apagar.
Hoje me dou conta de que não passou da fugaz impressão de mãos enluvadas na neve - que o Sol se apressa em derreter.
Mudo desespero
Para onde quer que olho vejo apenas gente triste, imersa em rituais íntimos de mudo desespero ante a indiferença geral.
São tão tristes quanto aquele sujeito do quadro O grito, de Munch. Mas não gritam e sequer falam; afogam-se em silêncio em um mundo que parece tornar-se cada vez mais soturno e desesperador.
Catadora de conchas
A ternura pode ser - com muita frequência - melhor que o sexo propriamente dito.
Eu gostava de dormir de conchinha com você. Ou em spooning, como dizem os ingleses, porque nessa posição o casal “fit togheter like spoons”.
Hoje só posso fazer isso com o Nick, que ainda se mantém fiel, mas não gosta de muita apertação. Ele me deixa apertá-lo um pouquinho, mas assim que percebe que adormeci dá o fora para poder dormir mais à vontade. Nick só gosta de aperto na hora de ver televisão, quando ele pula em meu colo e liga a maquininha de ronronar.
Negativos coloridos
Nossa história foi escrita em uma série de agendas Moleskine que me apressei em queimar, como uma espécie de exorcismo, de cerimônia de purificação.
Queimei as fotos também, para desfazer você em fumaça. Só não tive coragem de destruir os negativos coloridos aos quais você atribuía tanta importância por serem “fotografias de verdade”, e não simples cliques digitais. Eu achava tudo isso uma grande idiotice. Brincadeiras complicadas de meninos mimados. Hoje me parece profético o fato de que nossa história tenha sido registrada em negativo, como se negasse a si mesma desde o princípio.
A última folha
Outro dia encontrei uma árvore com uma única folha no Jardim Botânico. Fiquei apavorada, lembrando-me de um filme de Eddie Murphy em que sua vida está conectada com a de uma árvore, que perde folhas cada vez que ele fala. Quando a última folha se for, será o fim dele também. Mas, naturalmente, isso não aconteceu. Ele não chegou a morrer; é apenas seu velho eu, ganancioso e egoísta, que se vai para dar lugar a um novo eu, generoso e compassivo.
Não consegui me recordar do nome do filme nem do personagem. Contudo, bastou a lembrança do enredo para me reconciliar comigo mesma. Serenada, fiquei ali sentada, diante da última folha, esperando que ela me libertasse. Só que o Jardim Botânico fechou e eu tive que partir, deixando meu futuro ali, nas mãos daquela folha amarela.
Um sinal do destino
Fui lanchar na casa de mamãe e, de repente, um anjo surgiu diante de mim. Tatuado nas costas de minha irmã caçula, é bem verdade. O que não impede, no entanto, que ele tenha irrompido subitamente diante de mim com a força de uma verdadeira aparição.
Minha irmã está longe de ser um anjo, mas agora tem um anjo no corpo, o que, convenhamos, é melhor do que estar com o diabo no corpo, como se costuma dizer. Seu anjo é lindo, feminino, semelhante a uma versão adulta do querubim da Fiorucci, muito embora, segundo consta, os anjos não envelheçam: permanecem congelados na mesma idade para todo o sempre.
Nada disso importa. O que interessa é o fato de que um anjo apareceu para mim. E eu voltei a sorrir para a vida, ainda que um sorriso tímido e cauteloso.
Renascer
Descartando velhas fotografias, antes doces, agora insuportavelmente amargas, encontrei uma que espelha o que sinto hoje.
“I am under renovation”, dizia o cartazete na vitrine daquela livraria perto de Washington Square, que acháramos tão curioso.
É isto: Me too, I am under renovation.
De um jeito ou de outro é preciso mudar. Só não sei dizer em que direção. Nem quanto tempo essa renovação irá demandar.
Novos caminhos
Sinto-me no limiar de algo novo, ainda sem coragem ou disposição para dar o passo definitivo. Hoje sei que cada pequeno gesto é importante, fundamental, mesmo. Tudo está interligado, entrelaçado, de tal forma que você acaba se aproximando cada vez mais justamente daquilo de que você pretende escapar.
Mas é preciso seguir em frente, sempre. Estou apenas dando um tempo, reunindo coragem para dar o primeiro passo.