Os álbuns de família em Pernambuco: relíquia da memória visual e filtro da cultura[1]
Georgia Quintas[2]
Este artigo aborda, através da antropologia visual, os retratos de família e suas significações no âmbito simbólico, social e cultural da vida privada da sociedade patriarcal-escravocrata canavieira de Pernambuco no final do século XIX e início do XX. A temática contempla particularidades do acervo iconográfico investigado na Coleção Francisco Rodrigues (Fundação Joaquim Nabuco, Recife - PE). Memória, história e imagem constituem uma rede de representações sobre pertencimento, legitimização social no núcleo familiar patriarcal.
This article discusses, through visual anthropology, the family portraits and their meanings in the symbolic sphere, social and cultural privacy of sugarcane-patriarchal slave society of Pernambuco in the late 19th and early 20th century. The theme includes particulars of the iconographic collection investigated in Francisco Rodrigues Collection (Joaquim Nabuco Foundation, Recife - PE). Memory, history and image constitute a network of representations of belonging, social legitimization in the patriarchal nuclear family.
O álbum de retratos repousa sobre a mesa da sala. Está aí, à espera de alguém interessado em vê-lo. Não importa quem seja a pessoa que venha a contemplá-lo, se é um convidado ou alguém da família. Sua existência tem a função de armazenar cenas de um determinado núcleo familiar. Seu fio condutor é a história da vida. Colocaram-no sobre a mesa com a certeza de que, desse modo, as coisas estão registradas, desenhadas na emulsão fotográfica, fixadas na materialidade do suporte fotográfico e sentenciadas para a eternidade.
Seria possível considerá-lo como um livro simbólico, no qual a memória está conservada. Os códigos culturais formulam a organização visual de um universo social, seja das famílias ricas provenientes dos engenhos de açúcar, seja dos indivíduos que as rodeiam. Numa livre analogia com a literatura, as entrelinhas da imagem fotográfica estão na riqueza das características ambíguas entre o que é realidade e o que é supervalorizado. Ou seja: a linha que separa o real e a possível adaptação, a maximização da realidade retratada, é imperceptível.
Um dos eixos constituídos nos álbuns de retratos do século XIX é conduzido pela tendência (embora tenha sido oculto, mas presente no imaginário das camadas dominantes) de legitimação definitiva do poder e status para a posteridade. Fotografado está, inquestionável será. A modo de síntese diria que, de certa forma, os álbuns deixaram um legado acerca da imagem enquanto objeto de estudo antropológico, bem como de ferramenta no aspecto visual para a pesquisa.
À medida que a análise se fundamenta na vasta gama do material iconográfico pesquisado na Coleção Francisco Rodrigues, que integra o acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Recife-PE), é correto afirmar que existia um léxico específico de representação, pelo qual se produzira corpo visual constante e vigoroso. O que permite elaborar inflexões pertinentes com relação à alteridade, a como a imagem transcende a ideia que o referente faz de si mesmo para os outros e assim, pelo contrário, captam-se e resgatam-se os indicativos inseridos em um contexto cultural. Pois é fundamental que a visão da época seja recomposta para que então se possa refletir sobre o diálogo de diferentes olhares ou visões e sua relação complementar.
De volta ao álbum na mesa da sala.[3] O hipotético convidado sabe que não demorará a ver novamente os mesmos temas
fotográficos. Essa prática condiz com a conduta da época. Ao abrir um álbum de
retratos, a história daquela família será reconstituída, além de manter-se
atualizada com os últimos acontecimentos sociais do grupo familiar. Um belo
retrato que exemplifica as famílias numerosas de antigamente é Artur e
Lucina Cisneiros Albuquerque Melo e família. Nela eterniza-se uma
característica bastante comum nos álbuns: a reunião de todos os membros do
núcleo familiar. Desse modo, a identidade daquela família estaria preservada.
O tempo congelado, o momento fugaz. O axioma é que as situações metódicas de determinada família eram uma fonte primária de paradigmas ligados ao espírito de uma época, na qual a opinião alheia, o olhar alheio não eram só um objetivo, mas formadores medulares da leitura iconográfica e, certamente, o parâmetro de recepção da imagem retratada.
Ao se deter na Coleção Francisco Rodrigues,[4] observam-se, como mencionado por Aracy Amaral — autora de importantes artigos sobre fotografia, arte e sociedade —, rostos, semblantes, atitudes, trajes, cenários produzidos pelos fotógrafos, tentando assimilar algo de seu comportamento, de sua motivação (AMARAL, 1983, p. 118). Mas é interessante destacar também a fotografia como imagem da cultura, desempenhando a função de filtro cultural da realidade captada. Susan Sontag, entre suas diversas definições para o assunto, reivindica a imagem fotográfica como rito social, documento, exercício formal. Considera a autora que, através da fotografia, cada família constrói uma crônica, um retrato de si mesma, e uma coleção portátil de imagens que testificam sua coesão (SONTAG, 1981).
Antes de analisar as observações feitas para este trabalho, será feito um comentário acerca dos álbuns. É necessário deter-se no espaço físico, no qual foram armazenadas as fotografias, bem como a circulação dos retratos. Quanto a esse último ponto, historicamente, com a popularização da fotografia, todos cultivaram o hábito de trocar retratos, de modo que todos passavam a oferecer retratos como lembrança e prova de estima para com a outra pessoa (LEMOS, 1983, p. 56). Assim, os pequenos retratos — os carte-de-visite —, com suas dedicatórias, são encontrados nos álbuns, enriquecendo-os como prova das relações fraternais que envolviam esses oferecimentos. Portanto, além do grupo familiar de determinado álbum, podem-se perceber também vestígios de outras famílias e a integração delas no livro de fotografias em questão.
Dessa forma, em consequência do volume de cartes-de-visite e de cabinet-portraits que eram deixados pelos visitantes nas bandejas das casas, quando aumentava a quantidade, eram colocados numa cesta. Logo, surgiram os álbuns[5] nos quais eram colocados os retratos em janelas que comportavam duas fotografias, de verso uma para a outra (MOURA, 1983, p. 26). É importante destacar que os álbuns de família constituem um complemento significativo para a decoração das salas das residências aristocráticas, do mesmo modo que para as burguesas.
O antropólogo Claude Lévi-Strauss comenta seu ponto de vista acerca da simbiose entre o tempo presente e passado:
Entre ontem e hoje, entre hoje e amanhã, é preciso traçar fronteiras […]. Sempre estamos diante dessa escolha entre romper com o passado, mesmo recente, ou conservar — mas até quando? — velhas roupas e velhas coisas que ocuparam um lugar em nossa existência e são para nós como amigos defuntos (LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 133).
O pensamento de Lévi-Strauss refere-se a uma das questões mais presentes na ontologia dos álbuns de retratos do século XIX: a relíquia da memória visual. A analogia feita entre o enunciado e o objeto de pesquisa não se refere à conservação das roupas e coisas, mas sim das pessoas, do que representavam, principalmente do que escreviam em sequências temáticas. Afinal, os fatos reúnem um autêntico compêndio visual de uma sociedade cujos padrões são passíveis de desconstrução para o entendimento da sistematização e categorização dos temas fotográficos frequentes nas fotografias. Nesse aspecto, devemos ultrapassar a fronteira do simples folhear e analisar os limites de cada situação analisada.
É válida a pergunta do porquê de os álbuns conterem dados relevantes para o desvelo da alteridade existente neles. Em outras palavras, os retratos reafirmam fundamentos culturais da aristocracia da cana-de-açúcar do Nordeste brasileiro, além de abrigarem elementos da cultura material que permitem ler sua imagem e seu ambiente. Por tudo isso, é plausível que consideremos os álbuns de família como sendo o centro irradiador de difusão da vida cultural. Sua importância, embora seja localizada em variados segmentos epistêmicos, encontra-se integralmente como recurso simbólico de um passado preservado em sua totalidade.
Do ponto de vista do método de abordagem do material iconográfico aqui pesquisado, podem-se ressaltar os núcleos temáticos existentes e frequentes nas narrativas dos álbuns. Ou seja, persiste um código organizacional em retratar os indivíduos. Sendo assim, os retratos se estruturam a partir de segmentos, tais como: a família (pai, mãe e filhos), retratos femininos ou masculinos, casais, casamentos, recém-nascidos, crianças, amas de leite, escravos, ascendentes africanos etc.
Frequentemente também se verificam desde cenas de primeira comunhão, passando por retratos de religiosos (padres e freiras), de negociantes do açúcar, advogados (bem como outras profissões), inclusive de personalidades artísticas nacionais ou internacionais — com quem não existia vínculo pessoal com os donos dos álbuns. Desse modo, os álbuns de família representam não apenas o centro da família patriarcal-escravista, mas também o culto a pessoas que representam simbolicamente os cânones culturais em seus variados aspectos, político, religioso, artístico, econômico, bem como as características dos hábitos de comportamento e relações sociais.
Imagens de um passado que nos impulsionam à interpretação por uma perspectiva antropológica, a fim de, como bem disse Davi Arrigucci Jr. (1993), reconstituir a continuidade da experiência com o objeto, ao qual se deve dar voz. Portanto, o que se buscou na pesquisa, principalmente, foram as imagens mais representativas, que se destacaram entre as outras. Nesse sentido, os retratos escolhidos não se basearam na sua beleza estética ou em seu estado de conservação, mas o que se primou foram os elementos antropológicos subliminarmente documentados.
Sendo assim, o escopo da pesquisa foi a comunicação de significados, ou seja, a interpretação da imagem. Nesse contexto, não são relevantes a técnica do processo fotográfico nem os mecanismos químicos, por não serem determinantes para a reflexão aqui proposta. O que interessa é a linguagem fotográfica como suporte de representação sociocultural.
No entanto, as fotografias analisadas individualmente compõem uma rede complexa, que se articula rigorosamente com as outras imagens. O ponto de partida da análise é nas figuras solenes e seu indicativo enquanto ritual de vida social. Reflete Davi Arrigucci Jr.:
Integrada a uma série de imagens semelhantes devidamente contextualizadas, mesmo a imagem isolada se deixa ler contra o fundo de mistério que sempre encerra, ao mesmo tempo que lança luz sobre a continuidade dos rituais da vida social de quem um dia fez parte. Da mesma forma que o olhar, sentido que nos projeta para fora de nós mesmos, como observou Cortázar, a foto nos conduz para o mundo de fora, para o outro, para cujo reconhecimento pode auxiliar (ARRIGUCCI JR., 1993, p. 13).
A dimensão fotográfica observada permite vislumbrar códigos de leituras comuns. O olhar antropológico recompõe e identifica o panorama da vida de outrora, como mostra o material recolhido nos arquivos fotográficos da Coleção Francisco Rodrigues: vários álbuns de família da aristocracia rural de Pernambuco do século XIX e da primeira década do século XX.
Essa mostra documentária iconográfica constitui grande diversidade econômica, social e racial. Tais aspectos permitem que o processo de memória identificadora se torne efetivo. Assim, foram escolhidos os retratos de acordo com os tipos de conteúdo a fim de remontar o vocabulário visual e discutir os aspectos de cada uma delas, ou o aspecto analógico entre elas. Nesse sentido, as semelhanças e associações, ou, ao contrário, os antagonismos, formaram uma rede de significados que auxiliam nos nexos relacionais das imagens estudadas.
Como os temas fotográficos foram rigorosamente repetidos nos arquivos pesquisados, existe a possibilidade de comparação entre os espaços fotográficos. Em cada um deles verificam-se eixos temporal e espacial, embora possuam a unicidade também de dialogar intrinsecamente com as outras realidades icônicas. A importância do aspecto temporal, portanto, é essencial para a contextualização da fotografia estudada. Nesse caso específico, o que interessou ao processo de pesquisa foi o tempo social e cultural, dada a compreensão de que as representações se apropriam dos indicadores existentes da sociedade fotografada.
Conforme considerou Míriam Moreira Leite, toda captação da mensagem manifesta-se através de arranjos espaciais. Para ela, a fotografia é uma redução, um arranjo cultural e ideológico do espaço geográfico, num determinado instante, de modo que o eixo temporal precisa ser construído pelo pesquisador, através da formação de sequências cronológicas ou culturais (MOREIRA LEITE, 1993, p. 19).
No entanto, além das informações levantadas acerca das particularidades da coleção — tais como tipo, fotógrafo, data, local, identificação do retratado, indicados nas legendas das fotografias aqui apresentadas —, fez-se uma análise interna das fotografias. Compondo assim, como mencionou Moreira Leite (1993), o corpus documentário. Esse termo evoca a natureza e o sentido da imagem.
Deve-se destacar que uma das partes mais expressivas do mosaico cultural latente na coleção de fotografias Francisco Rodrigues reside na “compreensão da utilização e do significado dos fenômenos aparentes” (MOREIRA LEITE, 1993, p. 45). Nosso objetivo é analisar a constituição da imagem à sua temática cultural, de modo que a leitura das descrições icônicas leve à captação do que a memória visual sublimou da cultura.
Os retratos nos álbuns de família estabelecem as chaves para o conhecimento da construção do olhar antropológico, involuntariamente desenvolvida no século XIX com o advento da fotografia. Os documentos fotográficos apresentados como expoentes da Coleção Francisco Rodrigues, neste trabalho, são profícuos por conterem a riqueza das características mencionadas. A magia que existe na imagem não está em tudo o que oferece ou que depõe diretamente por seu aspecto aparente, analógico de similaridade, mas no que pode esconder, ocultar, tornar invisível e inatingível.
Retratos de família: documentos etnográficos
A produção iconográfica, conforme a avaliação feita nos arquivos fotográficos, é predominantemente sobre a vida privada e os ritos de passagem social. Enquanto algumas fotografias preservam a multiplicidade das figuras sociais, cujas particularidades recriam a sociedade do Nordeste de outrora, outras enunciam a história de cada indivíduo. O que se escreve com a imagem é a linha da vida, com todos os pontos relevantes que os referentes fotográficos pretendem eternizar por meio da memória iconográfica.
Por essa perspectiva, nota-se a importância dada ao registro das alegrias (por exemplo, os casamentos) e dos sofrimentos, como as imagens de parentes mortos. Faz parte da apropriação no círculo familiar, cujo interesse era o primeiro motivo, outra maneira de relacionar-se com a fotografia de família. Estas eram manipuladas (e ainda acontece com os herdeiros dos retratos de seus antepassados) como objeto de culto decorativo. Como argumentou a autora Míriam Moreira Leite:
[…] As fotografias antigas foram transformadas em objeto decorativo, como os móveis da época ou os objetos art-nouveau, e passaram a ornar as paredes dos descendentes, correspondendo, em parte, a uma visão “fina” da consagração do grupo familial a que pertencem (MOREIRA LEITE, 1993, p. 77).
Os retratos compilam, de certo modo, um legítimo desfile das mais variadas pessoas. No entanto, essa peculiaridade implica uma reflexão maior. Ou seja, o suporte icônico desenvolve um processo durante sua primeira introdução à sociedade, como resumiu Susan Sontag, quando a imagem é definida como uma coisa que pode ser roubada de seu dono (SCHERER, 1996, p. 77). Nesse processo, o sujeito enfrenta a captura da imagem fotográfica com o “terror da consciência”, a sensação de “retirada da alma” ou o medo da morte. No entanto, de acordo com Scherer, houve um tempo em que surgiu uma ansiedade universal de aparecer em todos os retratos.
Os retratos eram baseados na pose. Ao se posicionarem diante da câmera tanto o sujeito como o grupo fotografado, a convenção tendia a ofuscar as diferenças individuais, étnicas e culturais, como pontua Scherer. Acrescenta-se a essa característica estética a vontade de ser retratado vestindo as melhores roupas, especialmente aquelas reveladoras de status, como também a inclusão de objetos que simbolizavam status social ou que identificavam o acontecimento. Halla Belloff e Erno Kunt descrevem ainda outro ponto relevante. Segundo eles, existia um ponto em comum, transcultural, no uso dos retratos como relíquias rituais produzidas para comemorar acontecimentos importantes; em mudanças e exibições simbólicas de retratos, como substitutos de indivíduos ausentes; para mostrar a relação ou a veneração de heróis (apud SCHERER, 1996, p. 78). Em outras palavras, com a finalidade da celebração.
Frequentemente os retratos de família refletem a comunicação visual que se estabelecia através do objeto fotográfico, que era vendido, vinculado, manipulado, oferecido, admirado e guardado com orgulho, com zelo, por quem o recebia, em caixas, gavetas, em álbuns de família. Ou seja, o retrato como objeto pessoal, caro e significativo (AMARAL, 1983, p. 130-131).
Ao reconhecer os retratos de família como fonte inesgotável de informação de interesse etnográfico e análise para a antropologia cultural (RAMOS, 1999, p. 135), busca-se valorizar as que possam denotar a foto arquetípica. E assim, potencializar as fotografias que tenham em sua composição elementos fundamentais, tais como: a tomada da cena, o ângulo, a perspectiva e, principalmente, a organização espacial dos retratados. Assim, em concordância com Ángel Carril Ramos:
A fotografia etnográfica permite possibilidades não só de descrição mas de comparação, valiosa opção para os fins da etnografia, aqui com versão mais próxima da etnologia. Mas esta, do mesmo modo, pode ser de interesse sociológico ou antropológico dependendo dos parâmetros analíticos que utilizemos, dos códigos de interpretação que decidamos aplicar. A imagem é, em si mesma, versátil (RAMOS, 1999, p. 133).
Nesta pesquisa, parte-se de algumas imagens fotográficas, como será visto mais adiante, pois se entende que a riqueza oriunda delas reside na descrição e nas possibilidades de análise comparativa. A começar pelos casais, pois se constata que constituem um microuniverso, inclusive por ser a representação do axioma que faz parte da família patriarcal agrária aqui em foco.
Verifica-se que os retratos de casais seguiam uma mesma conduta em termos de disposição dos referentes fotográficos. A condição do casamento entre o homem e a mulher impunha-lhes uma postura de distanciamento mútuo, cujas expressões oscilavam entre a austeridade e as diferenças sociais implícitas: o que significava ser mulher no século XIX, e que papel desempenhava o sexo masculino. O aspecto simbólico possível de ser articulado está estreitamente relacionado ao aspecto social da época. Sobre isso, pode-se recorrer a Fernando de Azevedo:
Sob o império do homem, na família patriarcal que lhe atribui, com o mando e a dignidade de chefe, a posição privilegiada de senhor, como marido e pai, a condição de inferioridade da mulher, rebaixada no conceito e no tratamento, senhora e dona de casa em relação aos filhos e à famulagem, mas quase escrava em face do senhor feudal (AZEVEDO, 1958, p. 67).
A partir desse meandro social de poder e submissão, as fotografias aqui escolhidas ilustram esta situação. São elas: Retrato de matrimônio; Olegária Phaelante da Câmara Lima e Dr. Oswaldo Stanislau do Amaral; e, por último, Sebastião José Mendes de Hollanda, Engenho Solidão, Água Preta. Essas três imagens reúnem, de maneira exemplar, o paradigma da composição fotográfica observada na Coleção Francisco Rodrigues, ou seja, a representação estética do homem sempre imponente e austero sentado soberbamente. Enquanto que a mulher se submete a ficar do lado de seu marido, de pé. Depara-se com uma quantidade considerável de retratos com o mesmo rigor na disposição dos casais retratados.
Um dos mais interessantes aspectos icônicos presentes nessa tipografia dos retratos diz respeito ao fato de a mulher e o homem não se tocarem em demonstração de afeto. O máximo percebido, em termos de expressão de afeto, é a mão feminina ao fazer uma discreta ligação. A postura frontal dos casais apenas destaca a ausência de uma situação muito distante, mesmo estando numa aproximação corporal, pois, em geral, os casais fotografados compõem a imagem quase como um bloco piramidal. Outras versões desse tema fotográfico sequer apresentam um toque entre o casal.
A imagem Retrato de matrimônio inicia
a apresentação, revelando uma característica peculiar, porém nem sempre
trivial, que se verifica no fato de que a mulher, além de estar de pé do lado
do marido sentado, põe a mão no ombro do patriarca. É importante destacar que
essa imagem foi feita por volta de 1860. Cabe observar que se trata de pessoa
de mais idade. No entanto, em fotografia cronologicamente feita mais adiante,
entre 1890-1899, verificou-se um detalhe relevante com relação aos retratos de
casais da aristocracia da cana-de-açúcar.
A imagem em questão é do casal Olegária Phaelante
da Câmara Lima e Dr. Oswaldo Stanislau do Amaral. A rigidez
existente num casal tão jovem permite uma associação pertinente com a
fotografia mencionada anteriormente. A intensidade que subjaz a essa fotografia
guarda em si mesma um arcabouço de valores e questões familiares que ela, como
representante de tantas outras imagens existentes na coleção trabalhada,
exemplifica em toda sua complexidade.
A beleza estética desse retrato emoldura a elegância de ambos, tanto da mulher como do homem, e, principalmente, intensifica certa austeridade. Cerca-a uma atmosfera romântica, devido ao cenário em trompe l’oeil — no qual se pinta em um tecido em escala (quase sempre) de tamanho natural a reprodução de certa paisagem, simulando a realidade —, cuja característica principal é a ilusão tridimensional da realidade. Nesse sentido, a fotografia do casal demonstra com riqueza de detalhes esse recurso dos estúdios fotográficos deliberadamente utilizado.
O refinamento aparente no casal lhe assegura uma dialética plausível, que é a configuração na imagem de uma realidade e seu sistema simbólico, que pode vir a conduzir uma série de reflexões. O olhar longínquo (em parte consequência da relativa exposição pela qual o objeto retratado tinha que passar) sugere outras implicações, indicia um significado mais histórico. Logo, o contexto histórico vem dialogar com o sentido amplo da força dicotômica que edifica os casamentos. Fernando de Azevedo (1958) argumentou sobre diferentes aspectos que se imprimem no sistema de relações matrimoniais, no próprio amor e, principalmente, nas estruturas sociais da família nos diversos meios, de modo que não apenas suas nuances, mas sua natureza e seus valores de expressão variam consideravelmente segundo os papéis que a família desempenha nas sociedades.
Portanto, deve-se considerar que, nesse caso específico da sociedade patriarcal, o que vale não é o indivíduo em si mesmo, mas a família que o acompanha. Segundo Fernando de Azevedo, principalmente a força e autoridade do homem, chefe da família ou patriarca, ao qual as leis ou costumes concediam um poder ilimitado, destinavam-se menos a satisfazer o orgulho masculino que a manter, pela hierarquia e pelo domínio do pai e do marido, a solidez dessas fortes estruturas.
Mas, como em toda regra há exceção, pode-se contemplar
uma rara cena fotográfica. Essa imagem simbolizou em toda a coleção a antítese
de uma longa predominância estabelecida esteticamente e conjugada com as normas
da vida social em foco. O retrato de Sebastião José Mendes de Hollanda, ao contrário do que se viu até agora, revela um comportamento diferente: a
demonstração de carinho por parte do homem. Possivelmente, o homem,
proprietário do engenho de açúcar chamado Solidão (situado em Água Preta, Pernambuco)
— coloca sua mão no ombro de sua mulher, que, segundo consta nas fichas
catalográficas, é a primeira esposa desse senhor de engenho.
De fato, sobre o vocabulário icônico que regia as posturas dos casais no momento de capturar a imagem fotográfica, apenas em ocasiões, como os retratos de noivos, era mais usual o entrelaçamento dos braços. Mesmo assim, há inumeráveis fotografias nas quais se imprime o distanciamento, o desolador olhar de pouca ou nenhuma expressão de ternura, amor ou cumplicidade, num contexto real da celebração do casamento em si.
Identificam-se, com relação aos retratos de maridos e suas respectivas mulheres, alguns discretos indicativos nos quais a própria timidez dos atos, que poderiam ser de intimidade, é, na realidade, de um sufoco substancial nas relações do sistema matrimonial patriarcal da cana-de-açúcar. A imagem propagada acerca dos casais e aqui analisada, enquanto parâmetro visual, está repleta de significados sociais. Logo, devem-se introduzir, em paralelo a essas abordagens espaciais presentes nos retratos, premissas históricas que complementam a percepção das representações da imagem e refletem as peculiaridades culturais.
Comenta Miriam Moreira Leite (1993) que a maior dificuldade de leitura encontra-se nas condições de relação social que delas se deduz, no grau de arbitrariedade das posições na fotografia. A autora argumenta que outras questões interferem também entre o que é visto e o significado daquilo que é visto. Finalmente pergunta: “O que prevaleceu na fotografia foi a necessidade de simetria e beleza do enquadramento ou a necessidade de conhecimento das articulações sociais do grupo retratado?” (1993, p. 30).
Pode-se fazer um esboço sucinto acerca dos retratos de casais considerando que os referentes fotográficos tinham a mesma condição substancial: o casamento. Símbolo, índice e imagem existentes nesse tema fotográfico habitam num espaço milimetricamente delimitado. Em outros termos, postura, atitude e expressão (corporal e facial) configuram não uma situação cenográfica, mas, ao contrário, um enunciado da realidade. Austeridade, poder e distinção são sinônimos que integravam a desigualdade sexual. A figura feminina e a figura masculina contempladas na Coleção Francisco Rodrigues fixam uma construção visual calcada na manutenção de uma ordem social das famílias aristocráticas do açúcar.
É necessário também mencionar que tais descrições acerca dos retratos de família são projetadas no suporte fotográfico, que constitui um acervo involuntário de memória, no qual se traduz a vida cotidiana. Nesse sentido, deve-se perceber que subjaz aos retratos a vida privada, na qual as relações de parentesco e convivência são coordenadas plasticamente de maneira discretíssima e fria. Moreira Leite lembra que na imagem da família do século XIX são quase invisíveis seus hábitos. Mesmo sendo eles reiterados, e até repetitivos, a conduta predominante os mantinha ocultos, ou pelo menos tratados com discrição especial (MOREIRA LEITE, 1983, p. 54).
Pode-se observar e refletir sobre o microuniverso feminino do século XIX. Através de alguns fragmentos ele se vislumbra, ao se recomporem um pouco da vida dessas mulheres retratadas e os símbolos que as cercam. A ociosidade era uma característica essencial na mulher brasileira, pois, com a escravidão, o trabalho era visto como algo indigno. Então, as senhoras brancas e ricas queriam destacar-se para mostrar sua nobreza, civilidade europeia e status, mesmo que a condição doméstica lhes impusesse algum tipo ínfimo de tarefa do lar. Evidentemente, o trabalho pesado era feito pelos escravos.
Desse modo, a responsabilidade feminina era principalmente a de administrar a casa, a cozinha, a educação dos filhos, entre outras atividades. A mulher brasileira tinha o maior cuidado em não ser vista fazendo qualquer trabalho. E as mulheres da aristocracia do Nordeste contempladas durante a pesquisa do material fotográfico nunca manifestavam uma condição de trabalho. Por ser este indigno e ter um sentido pejorativo, de acordo com os valores sociais da época, a mulher branca queria representar sua riqueza, seu título de nobreza, ou o que pudesse qualificá-la como uma dama.
As roupas, as joias, os penteados e, finalmente, o
modo imponente como posava para o fotógrafo significavam escrever sua própria
existência como idealização dos padrões intrincados no poder econômico e
social. Por conseguinte, as mulheres eram retratadas em situações de educação
religiosa, lendo a Bíblia para o filho; de intelectualidade, ao pegar livros;
de mãe com seus filhos; em poses diáfanas, assim por diante. Tais
características emblemáticas são perceptíveis no retrato da Viscondessa de
Guararapes, Cândida Ernestina de Sá e Albuquerque. As senhoras dessa
sociedade estavam sempre elegantemente vestidas, impecáveis, o que significava
que os trajes nunca podiam ser associados à remota ideia de trabalho.
Na Coleção Francisco Rodrigues encontram-se algumas formas de analisar e resgatar nas imagens a vida na sociedade do açúcar e suas características sociais. Ao pesquisar as fotografias, após o processo de visualização, tentou-se descobrir vestígios contidos nelas: os escritos em forma de dedicatória ou simplesmente as identificações usuais sobre o retratado possibilitaram encontrar fragmentos emblemáticos para recompor histórias de vida, informações históricas, relações de parentesco, entre outros aspectos.
Contudo, vale mencionar que os álbuns de família foram desfeitos. Sendo assim, não é possível manipular na íntegra o álbum de uma determinada família, bem como fazer uma análise observacional da sequência em dispor as imagens e da possível hierarquia de condução narrativa para aquele núcleo familiar. O modo como a coleção foi catalogada é, a princípio, um “mar de imagens”. Ao se conhecerem as entranhas do acervo, percebe-se a existência representativa de grupos sociais: uma elite econômica e a classe social dos negros e mestiços.
Dessa maneira, foram encontrados dados relevantes com relação à biografia de alguns dos retratados, características genealógicas e também informações de conteúdo profissional. Os dados obtidos foram qualificados pela importância em acrescentar à história de vida a reconstrução de uma época. Contudo, é necessário considerar que essas “histórias de vida” só foram possíveis graças a Francisco Rodrigues, pois, devido a seu obstinado desejo, compilou todas elas em sua coleção. Rodrigues, quando precisava argumentar para conseguir retratos de amigos e conhecidos para sua coleção, lançava reflexões como esta: “Eles (os retratos) estão dispersos… ameaçados de serem esquecidos, abandonados pela gente mais nova que não lhes dá valor… Reunidos, vão contar muito melhor uma história” (declaração de Sílvia Rodrigues apud FREYRE, 1983).
É interessante observar que as informações obtidas baseadas em dados genealógicos revelam um mosaico cultural de estrutura de parentesco nas famílias pernambucanas, principalmente da elite econômica. Nesse sentido, verificam-se casos de casamentos de tios com sobrinhas; de viúvos que se casavam com a irmã da esposa falecida; de homens que se casaram muitas vezes após a morte das esposas; dos casamentos entre primos e, principalmente, de uniões entre importantes e tradicionais famílias proprietárias de engenhos.
No entanto, por aspecto mais pessoal, foram encontradas referências valiosas a respeito dos dados biográficos das pessoas fotografadas. De algumas, seria possível dizer que se tornaram importantes personagens da aristocracia agrária de Pernambuco. De fato, são nomes cujos sobrenomes lhes dão a legitimação do poder e prestígio de determinadas famílias. Constam nas fichas do arquivo da coleção, desde a formação educacional, passando pelas atividades profissionais, a identificação de propriedades (quantidade e nomes dos engenhos) até a parte que determina um discreto panorama da conduta social — com particularidades da vida política e de movimentos sociais e ideológicos, tais como os abolicionistas, os republicanos e os escravistas.
Além disso, o acervo guarda uma quantidade respeitável de retratados que possuíam títulos de nobreza — tratava-se de uma “casta” de senhores de engenho de açúcar que, sob os títulos do Império, formavam a sociedade nobre pernambucana. E, dessa forma, autoridades do Império misturavam-se aos engenhos, de modo a estabelecer não apenas uma identidade onipresente, mas um vínculo estreito com a legitimação do poder patriarcal-escravista agrário. De certo modo, alguns senhores eram temidos por sua autoridade, prestígio e, fundamentalmente, por sua austeridade.
Entre as fotografias escolhidas para este estudo identificam-se sobrenomes de tradicionais famílias do açúcar: Acioly Lins, Albuquerque, Andrade Lima, Cavalcanti, Carneiro da Cunha, Holanda Cavalcanti, Leal Villela, Paes Barreto, Queiroz Monteiro, Sá e Albuquerque, Souza Leão, Wanderley, entre outras. A partir desses sobrenomes, é pertinente avaliar as informações que demarcam não somente a vida do retratado, mas suas associações com outros pontos relevantes do contexto histórico e social da sociedade agrária pernambucana no século XIX e começo do XX.
Para começar, um retrato bastante interessante de um
jovem com belos trajes. Seu nome é Fernando de Castro Paes Barreto (“Maranhão”)
– Abolicionista do Clube do Cupim[6]. Paes Barreto, o orador do Clube
do Cupim, também era chamado por seu nome de guerra, Maranhão. Esse
jovem pertencia a uma linhagem familiar das mais tradicionais de proprietários
de engenhos de açúcar. Seu avô paterno era Felipe Paes Barreto, do engenho
Limão Doce, nome que lhe originou o apelido de Felipe Limão Doce.
O interesse maior desse retrato é a associação de Paes Barreto ao Clube do Cupim, considerado um dos mais importantes movimentos abolicionistas de Pernambuco. Em síntese, era uma sociedade secreta extremamente reprimida e perseguida pelo governo e pela polícia. Em 1880 surgiram as primeiras sociedades organizadas contra a escravidão. O principal desafio desses grupos era conseguir verbas para comprar cartas de alforria dos escravos. Instigados em 1884, pela província do Ceará, de terem decretado a liberdade de todos os escravos de seu território, a campanha contra a escravidão ganhou novo impulso.
Com o mesmo desejo da província abolicionista, o idealizador e fundador do Clube do Cupim, João Ramos,[7] passou a proteger escravos — até mesmo chegavam escravos pedindo-lhe ajuda para comprar suas cartas de alforria. A dívida era paga a Ramos com trabalho, de acordo com a proposta dos próprios escravos. Em 1883, seu envolvimento pela causa abolicionista era tanto que João Ramos, ajudado por amigos, já tinha estabelecido uma rota segura para os escravos fugitivos. Partindo dali iam para Mossoró (Rio Grande do Norte), depois para Aracati e Fortaleza, no Ceará. A partir daí, em 1884, João Ramos com outros onze amigos fundaram a sociedade emancipadora e abolicionista Relâmpago, que logo depois se tornou Clube do Cupim. Essa sociedade secreta[8] não possuía estatuto e sua principal função era a libertação dos escravos por todos os meios possíveis.
O retrato de Sebastião Grande de Arruda “Mucuripe”, também sócio do Clube do Cupim, é bastante expressivo quanto ao
conteúdo cultural. O homem visto usando um chapéu com a palavra “Cupim” é um
mulato, descendente de africanos, o que demonstra a sua ascensão social.
Nascido em Aracati, no estado do Ceará, em 1840, aos dezenove anos de idade
chegou ao Recife. Arruda foi um dos mais ativos abolicionistas do Clube do
Cupim. Ele fazia parte da comissão executiva para os auxiliares. Era uma figura
de destaque dentro daquela sociedade clandestina pela habilidade com que
planejava e levava a cabo a proteção dos escravos roubados ou fugitivos da senzala
e o embarque deles para o Ceará “sem rios de sangue, nem aparatos bélicos”.[9] Em sua trajetória política filiou-se
a movimentos democráticos e republicanos.
É fundamental examinar essas duas imagens dos sócios daquela sociedade clandestina abolicionista. A partir das duas, é possível analisar a dicotomia social e racial que ligava o campo da ideologia ao da escravidão. Enquanto existia a participação de um remanescente da mais requintada e tradicional aristocracia — o que denotava a mudança de pensamento à medida que mudava o status social —, havia o exemplo contundente da questão mais forte: a cor da pele. Sebastião Grande de Arruda representa um fragmento das outras camadas que ascendiam socialmente. Mulato, e embora em trajes mais modestos, demonstrava a altivez e elegância observadas também em Fernando de Castro Paes Barreto.
Em Recife, o Clube do Cupim foi ficando cada vez mais ativo no processo de reunir e enviar escravos clandestinos para outras localidades, como Natal, Belém, Rio de Janeiro, entre outras, e até mesmo Montevidéu, no Uruguai. Isso não impediu que o clube finalizasse suas atividades em 23 de abril de 1888 com a grande façanha de ter embarcado 119 escravos para outras localidades. Isso aconteceu quando faltava menos de um mês para a Abolição — em 13 de maio, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea.
As várias facetas do panorama social do século XIX
também foram refletidas em retratos que levam a outras idiossincrasias
culturais, como é o caso bastante representativo de Manoel Joaquim Carneiro
da Cunha, barão de Vera Cruz desde 14 de março de 1860. Sua
trajetória é reveladora sobre aquela época. Casou-se com sua sobrinha materna,
Maria Antônia Cavalcanti Carneiro da Cunha, que era senhora dos engenhos
Monjope e Tamatuape. Diferentemente das grandes proles dos senhores de engenho,
o casal, após 22 anos de casados, teve uma única filha, que faleceu ainda
pequena.[10] Sua vida pública também reflete as
atividades profissionais e políticas peculiares daquela elite. O barão de Vera
Cruz formou-se em Direito pela Faculdade de Olinda, em 1835, e no ano seguinte concluiu
o doutorado. Era membro do Partido Conservador, diplomata, escritor, historiador
e cientista. Foi também sócio-fundador do Instituto Arqueológico Histórico e
Geográfico de Pernambuco. Um dos feitos mais relevantes de sua vida política
foi ter hospedado em seu engenho Monjope o imperador Dom Pedro II na noite de 4
de dezembro de 1859.
Os motivos pelos quais a oligarquia agrária era
agraciada com os títulos do Império eram distintos. No caso específico do barão
de Goicana, Sebastião Antonio Accioly Lins, agraciado em
18 de janeiro de 1882, encontram-se dados relevantes em contraposição aos
paradigmas ideológicos e políticos dos senhores de engenho do século XIX. Pois
o barão, que também era advogado e proprietário do engenho Goicana (Rio Formoso,
Pernambuco), recebeu o título por ter libertado seus escravos. Militante político,
pertencia ao Partido Liberal e foi considerado um dos mais dedicados
abolicionistas.
Outro aspecto esclarecedor que revela os costumes das últimas gerações da aristocracia da cana-de-açúcar está bem representado pelo filho de uma autoridade do Império, Lourenço Augusto de Sá e Albuquerque. Por meio de sua vida, é possível recompor uma linha imaginária das mudanças sociais e culturais pelas quais a aristocracia agrária pernambucana passou. Filho de Lourenço de Sá e Albuquerque — Barão de Guararapes e de Cândida Ernestina de Sá e Albuquerque — Viscondessa de Guararapes, Lourenço nasceu no Engenho Velho (Cabo, Pernambuco) e morreu em Paris. Em seus retratos, nós o acompanhamos em pose de pequeno homem e como jovem, num típico grupo de estudantes de Direito. Essa fotografia mostra a formação de filhos da aristocracia em futuros profissionais e, como consequência, de uma classe intelectualizada que traçava outros caminhos rumo ao espaço urbano e os novos horizontes que isso promovia. De modo que Lourenço Augusto cabe como exemplo desse panorama de mudanças sociais. Após formar-se em Direito, fez carreira política, sendo deputado e foi membro do Partido Republicano Conservador.[11] Também exerceu outra profissão, a de jornalista, como era frequente entre aqueles homens de mesma formação intelectual.
No âmbito dos casamentos, destaca-se a união entre famílias tradicionais da aristocracia açucareira.[12] Assim foi o caso de João Correia de Queiroz Monteiro, do engenho Cotegy (Escada, Pernambuco), que se casou com Pamphila Cavalcanti de Queiroz Monteiro. São as referências acerca da mulher que colocam algumas questões sobre a riqueza que transitava na mesma elite agrária. Pamphila era conhecida como a senhora do engenho São João Novo (Cachoeira, Pernambuco). Também era vinculada a seu nome a Central Açucareira Santa Pamphila, que depois mudou de nome para Nossa Senhora do Carmo (Vitória de Santo Antão, Pernambuco).
Existem ainda mais informações sobre essa determinada sociedade e sua dinâmica socioespacial. Ou seja, o lugar onde se nasce e se morre também dimensiona a vida dessas “famílias do açúcar”. É na vida dessa figura heráldica, que é a senhora de engenho Pamphila Cavalcanti de Queiroz Monteiro (seu nome após seu casamento), que se encontra o detalhe relevante da sua simplicidade, porém contundente em sua complexidade. Sabe-se então que a senhora Pamphila nasceu no engenho Matapiruma e faleceu no Mameluco. Em síntese, começou e terminou sua vida em engenhos.
Para concluir este artigo, destaco a fotografia do
grupo da família Silva Barroca. O patriarca era José Rodrigues
da Silva Barroca. Essa imagem conota a força expositiva de um aspecto
fundamental com relação à identidade daquele grupo, que reflete
emblematicamente particularidades culturais. Naquele retrato vê-se uma jovem
mulher rodeada por cinco homens. Poderia supor-se que fossem seu pai e seus
irmãos, mas o que se destaca nesse retrato é que, nessa família numerosa, os
homens são identificados por suas profissões e engenhos. Jovens no retrato, mas,
no futuro, identificados por suas posições sociais.
Desse modo, constata-se que esta característica encontrada em destaque na família Silva Barroca é síntese e antítese daquilo que se percebe em toda a pesquisa. Ou seja, não foi encontrada a mesma situação que envolvesse mulheres e suas respectivas atividades. Não obstante, é interessante enfatizar o que assinala a família Silva Barroca: notar um paradigma que não é privilégio dela, mas todo um processo cultural da época, de maneira a ser frequente ter, entre seus membros, um oficial da Marinha (nesse caso, Carlos Ambrósio do Rego Barroca) ou um negociante, como é o caso de Antônio Valentim da Silva Barroca, do engenho Boa Sorte (Vitória de Santo Antão, Pernambuco), além de um possível licenciado.
Do ponto de vista da fotografia como demarcador de representações sociais, verifica-se esta premissa como linguagem corriqueira. No entanto, a imagem fotográfica costuma propor o léxico da representação de determinada época e, certamente, de todos os atributos particulares das camadas sociais. O olhar fotográfico é parte do mundo vigente com todas as implicações existentes acerca de uma visão da sociedade. Nela, na fotografia, escreve-se, ou melhor, descreve-se não só a realidade social, mas se expressa o que se quer transmitir com relação a seu espaço, a propósito do status social, e seu poder social. Nesse sentido, a imagem foi apropriada como símbolo da representabilidade cultural. As fotografias dos álbuns de família, objeto de estudo desta pesquisa, apresentam-se plenas de significados, potência contundente de análise sobre os aspectos sociais da “sociedade do açúcar”.
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SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Editora Arbor, 1981.
[1] O presente artigo sobre a Coleção Francisco Rodrigues, da Fundação Joaquim Nabuco (Recife/PE), faz parte de capítulo inédito do livro Jogos de aparência – Os retratos da aristocracia do açúcar: A representação cultural dos álbuns de família em Pernambuco nos séculos XIX e XX, que será publicado pelo selo Olhavê. Esta pesquisa foi desenvolvida no doutorado em Antropologia pela Universidade de Salamanca (Espanha), cuja defesa ocorreu em dezembro de 2007.
[2] Antropóloga, professora e pesquisadora no campo da teoria, filosofia e crítica da imagem fotográfica. Doutora em Antropologia pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pós-graduada em História da Arte pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP/SP. Autora dos livros: Abismo da carne (2014), Inquietações fotográficas – Narrativas poéticas e crítica visual(2014), Olhavê entrevista (2012) e Man Ray e a imagem da mulher– A vanguarda do olhar e das técnicas fotográficas (2008). Atualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, com ênfase em processos criativos. É curadora independente e escreve sobre fotografia no Olhavê.
[3] Acerca do mesmo tema, Michael Levy comenta que todos tinham uma mesa de centro com prateleiras. Colocavam o álbum na de cima e a Bíblia na de baixo. Levy acrescenta que, quando chegavam visitas, mandavam-nas sentar-se e abriam o álbum. Era o que se considerava delicado. Assim, a visita virava as páginas e, às vezes, comentava alguma coisa acerca dos retratados (LEITE, 1993, p. 94).
[4] O material iconográfico estudado pertence à Coleção Francisco Rodrigues do acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Recife/PE). Esse acervo começou com a façanha do dentista pernambucano Augusto Rodrigues, em 1927, com o objetivo de organizar uma galeria de retratos de personagens que viveram e atuaram na sociedade do século XIX, especialmente no estado de Pernambuco. As imagens datam de 1840 a 1920. Seu filho primogênito, o cirurgião dentista Francisco Rodrigues (1904-1977), que nomeia a coleção, prosseguiu a tarefa. Por meio de contatos com personalidades da época, Francisco Rodrigues conseguiu grande parte do acervo com a clientela das casas fotográficas. Esse fato foi relevante para a preservação das fotografias, assim como especialmente de alguns exemplares de qualidade. Arregimentou, assim, os mais diversos e importantes conteúdos narrativos, além do universo estético fotográfico.
[5] Os álbuns eram feitos em diferentes tamanhos, de origem americana ou europeia, sendo dos mais requintados materiais até os mais simples. As capas eram produzidas em papier-mâché, madeira, marroqui em relevo ou veludo. Havia em seu acabamento incrustações de prata, cobre, madrepérola, porcelana, esmalte e ouro. Na parte interna, as folhas possuíam “janelas” que acomodavam as fotos, era comum terem molduras com alegorias como flores, frutos, pássaros e paisagens (MOURA, 1983, p. 26).
[6] Etimologicamente, o termo “cupim” significa termita (inseto). Neste caso do Clube, a expressão era utilizada para simbolizar que o efeito do cupim era o mesmo que envolvia a atividade dessa sociedade abolicionista, de modo que alguns abolicionistas diziam que o objetivo era “libertar os centros populosos e fazer roer o cupim no interior”. Outra alusão ao termo foi feita pelo historiador Carneiro Vilela: “o novo Clube ia trabalhar na sombra a coberto das vistas alheias, e minar carcomendo roaz e minaz, o próprio cerne da nefanda árvore da escravidão” (VILELA apud SILVA, 1988). Historicamente, desde 1880 houve uma confluência de movimentos abolicionistas em todo o Brasil. Em Pernambuco, particularmente, existiam mais de trinta grupos que foram considerados a gênese do Clube do Cupim, fundado oficialmente em 1884. Muitos dos sócios-fundadores desta sociedade já tinham participado de outros grupos abolicionistas. Como se tratava de uma sociedade secreta, seus sócios adotavam apelidos, que eram os nomes das províncias do Brasil.
[7] Era do Estado do Maranhão, e foi para Recife com catorze anos.
[8] Após sua fundação, o Clube teve vinte sócios efetivos. Como cada um desses sócios dava ordens a um capitão que, por sua vez, comandava um subcapitão e mais vinte auxiliares, a sociedade chegou a ter em média perto de trezentos auxiliares.
[9] Ver mais sobre o tema em VILELA apud SILVA, 1988.
[10] Consta que sua filha se chamava Maria Archanja Carneiro da Cunha e que seu patrimônio ficou com seu único herdeiro, um sobrinho (conde francês).
[11] Lourenço Augusto de Sá e Albuquerque participou da Campanha de Dantas Barreto, em 1910.
[12] Existia a prática de casamentos entre primos, o que garantia o patrimônio econômico (em terras, escravos etc.) dentro do próprio núcleo familiar, de modo que encontramos dados representativos como o caso do coronel e senhor de engenho Francisco Antonio de Souza Leão, que foi casado com sua prima Maria da Penha Pereira da Silva, com quem teve doze filhos.