Apontamentos para uma leitura sobre fotografia e filosofia na obra de Vilém Flusser

Ricardo Mendes

Um ponto de partida

Uma frase do prefácio da primeira edição de Filosofia da caixa preta (Hucitec, 1985, p.8), entendida em princípio como uma mera formalidade, pura redundância em seu contexto, pode ser escolhida como nossa meta: “A intenção que move este ensaio é contribuir para um diálogo filosófico sobre o aparelho em função do qual vive a atualidade, tomando por pretexto o tema fotografia.

A partir dessa colocação vamos estabelecer uma abordagem da obra de Flusser, não como um relato final, mas um roteiro para leituras que procurem compreender a aproximação do autor à fotografia. Esse é um percurso que aponta certamente para uma crítica filogenética, mas tal alvo é um objetivo distante.

Para elaborar esse roteiro de viagem é necessário estabelecer algumas primeiras decisões. Não se pretende aqui desenvolver um quadro histórico da presença de Flusser no Brasil, pois esse traçado já foi delineado em ensaio anterior, intitulado Pensando a fotografia (a memória), de 1998[1].

É mais importante delinear a partir de que horizonte se estrutura a obra flusseriana.  Esse aspecto é fundamental se considerarmos que a produção de Flusser foi regularmente caracterizada como dispersiva tematicamente e criticada por sua ausência de método.

Uma aproximação mais sistemática a seus textos, que constituem sim uma obra dispersa, de difícil acesso e conseqüente compreensão de seu desenvolvimento, permitirá observar uma situação completamente distinta. Esse conjunto revela uma obra marcada por uma condensação temática severa em busca de concisão e síntese. É, nesse sentido, que a presente abordagem sobre sua obra deve ser entendida.

Em carta a Sérgio Paulo Rouanet, datada de 9 de fevereiro de 1980, Flusser expressa com clareza o ponto que nos interessa: “meu campo original” é a lingüística; “meu trabalho atual”, a política e epistemologia (em sociedade pós-industrial)[2].

As questões da língua, a qual deve ser entendida de forma mais adequada como linguagem em todas as suas modalidades, é o tema de seu primeiro livro – Língua e realidade (Herder, 1963). Flusser propõe então uma análise que estabelece uma visão integradora de diferentes modalidades, da expressão verbal a visual e sonora. Sua intenção é definir um modelo que permita entender a comunicação em sua prática cotidiana, mas que aponte também para a produção criativa. A leitura dessa obra é essencial para compreender em contexto mais amplo aspectos que surgirão anos mais tarde ao abordar as tecnoimagens, em especial o conceito de liberdade do fotógrafo.

Datam do mesmo período, meados da década de 1960, os primeiros textos de Flusser enfocando linhas temáticas que ganharão gradativamente relevância para nosso tema. É nesse período que atua como professor em filosofia da ciência na Escola Politécnica, bem como produz seus primeiros artigos sobre automação e cibernética, utilizando aqui a terminologia de época.

Em paralelo, dedica-se a partir daí à teoria da comunicação. Entendam-se nesta perspectiva, dois desdobramentos significativos de sua produção: um, enfocando os gestos, e outro, numa complementação possível, os objetos.

É nesse quadro de preocupações definidas em meados da década de 1960 que é possível identificar a elaboração de uma obra teórica marcada por uma visão aparelhística da cultura contemporânea. Noções de aparelho e do funcionário tornam-se freqüentes em sua obra ao final daquele período. A influência de Hannah Arendt é comentada várias vezes por Flusser e aspectos desse debate podem ser vistos, por exemplo, no artigo  A banalidade do mal, publicado em O Estado de S.Paulo, de 26 de julho de 1969 (Suplemento Literário, p.5).

A aplicação do conceito do aparelho como ordenador da cultura contemporânea parece estar completa em sua obra ao final de 1980, de quando data o manuscrito em português do livro Pós-história, publicado apenas em 1983. A noção do aparelho introduz um tema correlato: o da liberdade. Este será um aspecto conflituoso em seus textos, como veremos adiante.

O horizonte de trabalho de Flusser parece caracterizar-se em meados da década por dois aspectos relevantes para nosso debate: a análise epistemológica, que aproxima continuamente os campos da ciência e da arte, e o método fenomenológico adotado.

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[1]   O ensaio foi apresentado em 1998 no Internationales Vilém-Flusser-Symposium: für eine Philosophie der Fotografie: Ideed und Wirkung (Bielefeld/Alemanha) e em 1999 no seminário Vilém Flusser no Brasil: uma apresentação (SP/RJ). O texto integra os anais desse último evento, editados pela Relume Dumará (2000), estando também disponível no site Vilém Flusser no Brasil: Bodenlosigkeit (http://www.fotoplus.com/flusser).

[2]   Essa carta integra o conjunto mais expressivo de sua correspondência com intelectuais brasileiros, diálogo que se estenderá por toda a década de oitenta. O uso dessa categoria de fonte é um aspecto inexplorado nos estudos sobre o autor, mas fundamental para sua compreensão seja no aspecto de datação de textos, seja no debate com contemporâneos. Tal documentação epistolográfica é abundante, mas está parcialmente reunida no Vilém_Flusser_Archiv, em Köln (AL), ordenada por remetente, sem maior tratamento catalográfico.