Entre a memória e o esquecimento: o realismo da obra de Sophie Calle - 1 / 3
Ronaldo Entler
Os personagens da fotografia têm uma forte vocação para o anonimato. São muitas vezes escolhidos a certa distância, em meio à multidão e, somente depois, diante da imagem pronta, são objetos de um olhar mais detalhado, atento ao vestuário, aos gestos, fisionomias, ao caminho que seguiam. Nesse momento, a especulação sobre a identidade das pessoas retratadas pode ser inevitável mas, ainda assim, muitos autores normalmente assumem o anonimato como condição de seus registros.
Em termos formais, esse personagem pode ser apenas um elemento da composição. Em termos referenciais, pode ser um representante aleatório de um grupo social mais amplo. No entanto, se nosso olhar não é o do esteta ou do cientista, veremos que ele resiste a esses papéis: encontramos nele algo além da matéria-prima que constitui a obra de arte e do espécime exemplar de uma categoria social. Vemos um indivíduo com sua história irredutível, apesar de inacessível, e que pode fisgar intensamente o olhar mais despretensioso.
É assim ao depararmos com uma fotografia perdida em um livro antigo, ou jogada no meio dos objetos herdados de um membro da família que sequer chegamos a conhecer. Quando nos deixamos tocar por essas imagens, somos envolvidos por uma história latente que já não podemos recuperar. A inexistência do relato cria um paradoxo que nos detém: há ali um passado, e a imagem só é capaz de nos lembrar de que ele está definitivamente esquecido. Há, portanto, a presentificação de uma ausência.
O interesse que podemos ter por essas imagens distantes é diferente daquele que move um cientista, que tentará entender, geralmente através dos modelos que sobrevivem na imagem, o modo de vida de uma época, o vestuário, o gesto, a família, o trabalho, a hierarquia das relações etc. Falamos de um interesse particular pela realidade, não diretamente a nossa realidade, mas a de um outro. Sendo inapreensível, suas faltas transformam-se facilmente em abertura para que o imaginário complete e dê sentido aos fragmentos deixados pela realidade.
Sophie Calle: testemunho e ficção
Quando se fotografa cotidianamente, a distância criada entre aquele que toma a imagem e aquele que nela aparece é fruto das circunstâncias: não há razão para querer identificar cada pessoa que cruza a câmera. Fotografa-se simplesmente e o desconhecimento é uma conseqüência que, eventualmente, se explora ou remedia posteriormente.
Sophie Calle vai além desse caráter circunstancial do desconhecimento e fundamenta seu trabalho nas presenças incompletas que a imagem oferece, operando-as de modo sistematizado e tomando-as como conceito central de seus projetos. Com isso, ela consegue aprofundar a distância com a realidade que investiga, sem jamais rompê-la.
Muitos de seus trabalhos incluem fotografias, relatos textuais, além de um envolvimento performático da própria artista. Em Suíte Vénitienne, de 1980, ela escolhe aleatoriamente um personagem em Paris e o segue até Veneza durante quase duas semanas, fotografando-o e entrevistando pessoas com quem ele se encontra, sem jamais abordá-lo diretamente. Nas imagens e textos publicados, a identidade e o rosto do homem tampouco são revelados ao público. Invertendo o jogo, em
La Filature, de1981, Calle manda contratar um detetive particular para segui-la e constituir um relato sobre suas atividade ao longo de um dia. Ela não conhece a pessoa que a seguirá, mas pede a um terceiro que se coloque num ponto de seu caminho e fotografe as ações de qualquer um que pareça segui-la. Num quebra-cabeças cujas peças são imprecisas, ela expõe estes diferentes olhares cruzados: os dois registros fotográficos e três relatórios, o dela própria sobre seu dia, o do detetive contratado e o dessa terceira pessoa sobre as ações do detetive. Em
Hôtels, de 1983, ela retorna a Veneza onde passa a ocupar a função de camareira num hotel. Lá, a artista fotografa os objetos deixados pelos hóspedes em seus quartos enquanto estão ausentes, tentando através deles recompor seus hábitos e personalidades. Em
Les Tombes, de 1990, ela trabalha sobre uma ausência reduplicada, fotografando túmulos sem nomes, onde apenas se lê algum tipo de parentesco (mãe, pai, irmã...). Em Une jeune femme disparît, de 2003, Calle apresenta uma série de documentos sobre Bénédicte Vincens, funcionária do Centro Georges Pompidou, conhecedora e admiradora do trabalho da artista, que desapareceu logo após o incêndio de seu apartamento. Ao lado de fotos feitas por Calle do apartamento destruído, apresenta-se uma série de cópias-contato de negativos encontrados no local, parcialmente derretidos pelo fogo, mas que ainda são capazes de fazer referência a pessoas e lugares ligados à vida de Benedicte
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As obras de Sophie Calle são sempre marcadas por relatos que não escondem uma dose de envolvimento afetivo diante de hipóteses que elabora sobre seus personagens. Na trama que recompõe a partir de imagens e dados coletados de forma fragmentária, ela própria acaba por se transformar em personagem de sua obra.
Quando fundamenta seus trabalhos num efeito de realidade produzido pela fotografia, não pretende sublinhar o poder de analogia ou a capacidade retórica das imagens fotográficas. Ao contrário, o que faz é demarcar a incompletude e a precariedade de sua mensagem para garantir nela um espaço de identificação. O interesse não é científico e o compromisso não se dá com uma suposta verdade. Caso contrário, poderia simplesmente entrevistar os personagens observados em vez de rodeá-los e de vasculhar seus objetos. O anonimato é parte de seu método, pois tão importante quanto o apontamento de uma existência real é a impossibilidade de esgotá-la num relato.
Essa distância de que falamos retira seu valor da tensão entre elementos paradoxais: o eloqüente estereótipo da composição e a muda singularidade de uma existência. Entre um e outro, permanece uma lacuna que pede para ser preenchida, mesmo que seja através da imaginação. Ou melhor, preferencialmente através dela, porque é ela que pode garantir a identificação, isto é, a inserção daquele que observa dentro do evento observado.
É esse o convite que a artista aceita e às vezes repassa a outros olhares. Calle não está empenhada em decifrar o modo de vida de uma sociedade ou sequer em resgatar a biografia de um personagem importante. Seu interesse é semelhante àquele de Baudelaire, quando dedica uma breve paixão a uma passante ("À une passante", 1857), que o poeta observa à distância e deixa se perder na multidão. Assim também ela preserva o caráter inapreensível de seus objetos, se interessa mais pelas insolúveis perguntas lançadas do que pelas respostas certas que, provavelmente, apenas serviriam para anular o desejo que garante o vínculo entre aquele que olha e aquele que tem sua imagem fragilmente retida.