Fotografias de Joel-Peter Witkin - The Glassman - II Lilian Sagio Cezar |
The Glassman
Seria o Glassman de Witkin um super-herói às avessas? O fotógrafo comenta no site http://www.zonezero.com que sua relação com o vidro sempre foi intensa. Seu pai e seus tios eram vidraceiros; o primeiro trabalho de Witkin foi quebrar os vidros trincados para que depois seu pai os pudesse repor. Naquela época não se trabalhava com equipamentos de proteção e, certa vez, um caco de vidro entrou na parte branca do olho do futuro artista. Seu pai, com um palito de fósforo, virou e segurou sua pálpebra, e, com seus grandes dedos tirou o caco. Para o fotógrafo, essa foi a comunicação mais próxima que tivera com seu pai. Tendo em vista essa experiência relatada como o conceito original que permeia a elaboração da fotografia The Glassman, Witkin partiu em busca de um corpo que pudesse lhe servir como modelo para as fotografias. Viajou para a Cidade do México e ali buscou nos hospitais, corpos de pessoas desconhecidas. Os corpos ali recolhidos pela rua, durante aqueles dias de estada, não estavam sendo considerados úteis por Witkin para seu propósito, pois geralmente chegavam ao hospital já com o nariz quebrado, eram pessoas já idosas ou em avançado estado de decomposição; por isso, sua estada na cidade foi ampliada em quatro dias a mais do planejado. No dia anterior à sua partida, funcionários do hospital ligaram para o fotógrafo avisando que quatro corpos tinham sido recolhidos pelas ruas; ele se dirigiu ao hospital e entre os quatro corpos o que estava em melhor estado era o de um jovem homem ruivo, com ornamentos (tatuagens, corte de cabelo) "punks". Witkin iniciou seu trabalho tirando algumas fotos só para registrar, posteriormente tentou realizar algumas fotografias colocando um peixe nas mãos daquele homem, mas nenhuma das imagens o satisfez. Então, pediu para os legistas prosseguirem a autópsia. Saiu da sala por alguns instantes para conversar com seu intérprete e quando voltou viu a transformação que ocorrera com o corpo. Segundo o fotógrafo, o corpo do homem não era mais o de um "punk", tinha ganhado ar de elegância, seus dedos aparentavam ser mais longos, pareciam que queriam ganhar a eternidade. Witkin passou a fazer o ensaio do qual surgiu The Glassman. Análise Segundo Barthes, em A Câmara Clara, "deveríamos nos perguntar mais sobre o vínculo antropológico da Morte e da nova imagem. Pois é preciso que a Morte, em uma sociedade, esteja em algum lugar; se não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez nessa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida. Contemporânea do recuo dos ritos, a Fotografia corresponderia talvez à intrusão, em nossa sociedade moderna, de uma Morte assimbólica, fora da religião, fora do ritual, espécie de brusco mergulho na Morte literal. A Vida/ a Morte: o paradigma reduz-se a um simples disparo, o que separa a pose inicial do papel final" (1984; 138). O que dizer então quando se fotografa uma pessoa morta? Mauro Guilherme Pinheiro Koury trata dessa questão em Fotografia e a Questão da Indiferença. Refere-se à banalização da morte realizada principalmente pela fotografia jornalística. Imagens de corpos jogados, esquecidos em locais ermos ou em via pública parecem não mais chocar os olhos do observador, a não ser pela morbidez e estética - o sujo, o poluído. Essa falta de sensibilidade parece estabelecer uma distinção profunda entre o lado público e o lado privado da morte e da dor. Para o autor, a morte no espaço público é produto de uma experiência societária terrível, mas necessária às políticas de ordem, segurança, crescimento e progresso dos povos. A morte no espaço privado é processada na subjetividade individual ancora-se em instâncias desindividualizadoras da sociedade (religião, família). O jovem "punk" fotografado por Witkin morreu num lugar público, mas não é a cena de sua morte que vemos no Glassman, não é o local onde fora encontrado, e sim ele, o corpo - depois de ter passado pela autópsia e "ser devidamente posado" para a realização da imagem. A autópsia é um procedimento médico científico pelo qual se avalia a causa da morte das pessoas. As informações dela obtidas constam no atestado de óbito e também são colhidos dados que irão constar nas estatísticas que desenham o perfil da sociedade, e que dão embasamento às políticas públicas que visam avaliar as condições de vida da população e, em última instância, evitar novas mortes. Nesse sentido a autópsia nega a morte como algo natural, busca suas causas, violentam o corpo morto em nome de um bem maior e comum: evitar novas mortes! Mas como negar a morte, se todos somos mortais? O homem talvez não queira mais ser mortal... Witkin em The Glassman fotografou instantes posteriores à autópsia, um tabu, considerado quase como um momento secreto. Assim, a fragilidade do corpo humano foi denunciada pelo fotógrafo. Suas imagens remetem ao fato de o corpo humano aceitar grandes colagens na forma (por meio de plásticas, transplantes, tatuagens, etc.), porém, isso pode não ser suficiente para conter a vida no corpo. Assim podemos perceber The Glassman como um misto de vida e morte. Sabemos que a foto mostra o corpo de alguém que morreu. Vemos a costura de sua autópsia, ao mesmo tempo vemos o homem sentado, olhando para frente, meio que de relance em relação à câmara, e perguntamo-nos: será que vive? A pose engendrada pelo fotógrafo remete à clássica imagem católica de São Sebastião, amarrado, frechado, com olhos abertos e súplices. Não queremos acreditar que ele, justo o referente da foto, está morto e que o fotógrafo trabalha com pessoas sem vida. Retemo-nos a maneira como o fotógrafo trabalha e isso pode impedir-nos de tentar pensar num sentido mais amplo e profundo a imagem fotográfica. As fotografias de Witkin podem causar tamanha estranheza ao público receptor que a fotografia, enquanto símbolo, torna-se secundária diante da inevitável pergunta: como o fotógrafo fez essa foto? O que leva o receptor a consumir/ assistir os making off de filmes de terror holliwodianos onde se pretende descobrir os truques, montagens, etc., talvez seja da mesma ordem de curiosidade que questiona o receptor quando este se depara com uma fotografia de Witkin. Com um atrativo ainda maior, a imagem fotográfica permite que o olhar do receptor seja mágico, reconstituindo a dimensão temporal perdida através do vaguear circular dos olhos sobre a imagem (Flusser, 1997). As fotografias de Witkin, por seus temas e pela composição empregada denunciam-se como imagem simbólica, por não pertencer à categoria de imagens que se impõem ao receptor enquanto "objetiva" e "transparente". A análise teórica de fotografias pode auxiliar a revelar a essência das câmaras fotográficas: são aparelhos que constróem simulacros, ou seja, fabricam figuras autônomas que significam as coisas, e não simplesmente as reproduzem. Nas imagens técnicas, o aparelho e o agente humano formam o complexo "aparelho-operador", que parece não alterar ou influenciar o elo entre imagens e significado. A imagem processada tecnicamente impõe-se como entidade "objetiva" e "transparente", não provocando no receptor a vontade e necessidade de decifrar a imagem (Flusser, 1997). Porém, são inúmeros os processos e intenções presentes no ato da concepção de imagens, que permanecem ocultos aos olhos leigos devido à automação de sua impressão sobre a superfície; como se a imagem resultante fosse assimbólica, fazendo-se crer como a direta representação do mundo. Nas imagens tradicionais, o agente humano elabora símbolos em sua mente e transfere-os para a superfície da imagem por intermédio de sua mão. Esse engenho e esforço são notórios e reconhecidos, o que faz com que o receptor, ao vislumbrar uma obra pictórica reconheça a presença do pintor, o tema central do quadro, alguns dos elementos de composição que o pintor faz uso e parte de suas intenções enquanto produtor de imagem - parte, pois muitos sentidos e motivações que dizem respeito a outras épocas nos são hoje visual e contextualmente desapercebidas (Bourdieu, 1996). O fato de as fotografias de Witkin referirem-se a obras pictóricas talvez tenha correlação com essa característica intrínseca do picturialismo de ser apreendido como produtor de símbolos, em contraposição e denúncia ao falso caráter objetivo das imagens técnicas. Assim, ao se questionar sobre como determinada fotografia fora feita, o receptor atento pode perceber que:
Por intermédio de suas fotografias Witkin, enquanto fotógrafo e artista, impõe-se autor aos olhos do receptor. |
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