A construção da auto-imagem de povos indígenas ressurgidos

Notas etnográficas: A construção da auto-imagem de povos indígenas ressurgidos
Os Tumbalalá, os Kalankó e os Karuazu, Kóiupanká e Catókinn - III

Siloé Soares de Amorim

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A construção da auto-imagem

 

Os aspectos culturais dos Tumbalalá, Kalankó e Karuazu, Catókinn e Kóiupanká ressurgem de metáforas que envolvem, de um lado, as "pontas de ramas" e os "troncos velhos"[15], de outro, o ressurgimento de vários comunidades que se separaram do seu "tronco originário" e se desenvolveram sob infinidades de releituras culturais de origem indígenas em confronto com a sociedade dominante.

Ao mesmo tempo em que tentam desconstruir a imagem do índio genérico que a sociedade majoritária construiu em torno da identidade indígena no Brasil, os povos ressurgidos visam construir uma "outra" imagem que respalde sobretudo em padrões visuais sua identidade contemporânea como índios. No processo dessa construção, por um lado, demandam a restituição de seus bens territoriais, por outro, evocam sua identidade étnica repleta de diferenças entre o ancestral pré-cabraliano e o atual, que transita nas periferias urbanas, semi-urbanas, rurais; entre suas aldeias, a selva e as bancadas parlamentares almejando criar paralelos entre seus espaços étnicos e o mundo que os rodeia, e uma paridade entre a imagem que demanda esses espaços sócio-politicos e uma imagem visual que tentam construir com a finalidade de se auto-identificar e serem identificados.

Nesta complexidade, as construções do mundo ou do universo social que buscam erigir demandam desses povos resgatar e incorporar o universo indígena que foi se distanciando paulatinamente de seus ancestrais, no tempo e no espaço, mantendo apenas possíveis relações esporádicas com estes últimos e buscando assimilar também o mundo dos "brancos", para eles, burocratizado e sinuoso, com o qual interagem no processo de ressurgência étnica.

O universo desses povos, antes vistos como camponeses pobres, sertanejos marginalizados, afastados de seus descendentes, ao ressurgir, criou outras formas de organização social, de parentesco. Distanciados de seus descendentes por décadas, foram levados a optar por novos aprendizados que os afastaram ainda mais do "tronco" ancestral, de seus mitos, de sua cultura. No processo em que se encontram, são por vezes incentivados, por outras obrigados a resgatar e gerar redes de relações com um mundo totalmente adverso ao que já estavam habituados, tendo que compor e recompor, ordenar e reordenar seu universo cultural, político, econômico, religioso, psíquico-social, ecológico, buscando superar barreiras que os separam entre ambos os mundos: o indígena do qual "estavam distante" e o do branco, com os quais mantinham uma dinâmica totalmente contrária àquela exigida no processo de ressurgência.

Na construção da auto-imagem estão projetadas múltiplas identidades (religiosas, culturais, sociais, raciais, entre outras) acumuladas ao longo dos anos de afastamento do "tronco", com as quais esses grupos tiveram que conviver, inclusive de "forma desconexa" da realidade indígena. Esta, com toda sua carga representativa contemporânea, passa a funcionar de forma totalmente estabelecida, estando eles de acordo ou não, tenham eles assimilado ou não tal processo, tal realidade, sua maneira de ser nesse novo contexto social, político, religioso, cultural. Neste sentido, aprenderam a anunciar de forma sui generis sua realidade, sua maneira de ser atual.

Enquanto grupos étnicos, especificam elementos (externos) de enunciação dessa realidade que são assimilados e comunicados por meio de recursos dancístico-ritualísticos, elementos visíveis-sensíveis que compõem suas formas de resgate sócio-cultural e religioso e que expressam suas necessidades de reafirmar-se etnicamente frente a determinadas situações de conflitos internos (com seus semelhantes) e essa multifacetada realidade externa, que gera uma enorme capacidade de estabelecer associações com diferentes estruturas cósmicas/indígenas e o mundo dos brancos que os rodeia. Tal processo leva-os a abstrair e eleger significados que consideram - mais ou menos - pertinentes para a construção de sua imagem e a reconstrução de seu universo indígena atual.

A construção identitária ou da auto-imagem desses povos obrigatoriamente passa por dois focos de análise: Um corresponde ao processo interno de construção e reconstrução identitária da própria imagem (aqui me referindo não aos elementos gráficos dessa imagem, esse merece um outro tipo de tratamento) do grupo, como etnia específica, isto é, com etnônimo próprio e suas estruturas hierárquicas (sócio-culturais, religiosas e políticas). As relações desses sujeitos e suas representações davam-se de forma desconexa. Com a necessidade de reconhecimento formal ou oficial, criaram novos modelos de coesão grupal, novos hábitos de interação com o meio social e ecológico, e teceram novas formas de inter-relações com seus "parentes" e o mundo que os rodeia. O outro está estreitamente ligado às relações com o mundo externo, com a população local, regional, internacional e, mesmo, perante seus semelhantes que, todavia, encontram resistência em assumir esses "novos" índios como parte da população indígena nacional devido a sua transfiguração étnica que precisa de suporte visual para sua identificação.

Nesses dois aspectos, os índios em questão se inserem no Movimento Indígena por uma necessidade intrínseca a sua resistência como povos aqui existentes há milênios, sobrepassando os limites de sua sobrevivência no tempo e no espaço. A exteriorização de suas memórias, principalmente no que se refere à dança, canto e rituais, observadas como construtoras de sua identidade e de sua auto-imagem, é o caminho que os leva a simbolizar essencialmente as relações abstratas, como a cosmologia, narrativa mítica intimamente ligada a seus ancestrais, cujas relações, a princípio, reorganizam seu universo indígena e sua identidade atual a qual encontra-se num momento de reflexões profundas e faz parte de um processo delicado, longo, que precisa de todo o apoio para se auto-afirmar.

A dinâmica desse processo de ressurgência demanda desses índios uma autonomia que os obriga a interagir com flexibilidade. Tal situação obriga-os, como forma de resistência, a manter uma imagem social (preestabelecida e disseminada entre a sociedade majoritária), mas, principalmente, a cultivar uma imagem visual, para que sejam aceitos como índios nos parâmetros do indigenismo oficial e perante a sociedade nacional. Problemática que nos abre para outras formas de abordagem antropológica devido a que fixam e estabelecem relações e constroem imagens identitárias (visíveis ou não), tomando como referência elementos sócio-culturais e visuais de acordo com as de seus descendentes (Pankararu, Tuxá ou Truká, e Geripankó).

Apesar de compartilhar com os índios da região as mesmas problemáticas e os mesmos espaços - temporal, geopolítico, social e cultural -, diversificam seu universo étnico, o que os torna capazes de confrontar e eleger os significados que consideram pertinentes para essa construção, na qual são levados a reinventar uma imagem não só nos termos das relações sociais estabelecidas entre o universo indígena e o dos "brancos", mas também como uma forma de autonomia e, principalmente, no sentido mesmo de cultivar uma imagem e apropriar-se dela materialmente, isto é, visualmente ou graficamente, que os distinga e os legitime enquanto índios, enquanto um povo diferenciado perante não só a sociedade como um todo, mas principalmente frente a si mesmos, que nasceram ouvindo dizer que seus pais, seus avós, seus tios eram índios e que muitos "foram pegos a dente de cachorro".

No imaginário dessas pessoas, isso tem o significado de que ao recobrar o direito de outra vez ser índio estão também devolvendo-o a seus descendentes, ao mesmo tempo em que contribuem para a construção e a formação de imagens (visuais e sociais) das sociedades indígenas contemporâneas que, em sua onipotência, própria desses povos, refletem os preceitos da sociedade que os submeteu e na qual estão submersos, expressando, dessa maneira, a realidade concreta de sua existência.

Gradativamente, mediante o contato direto com a sociedade dominante, esses povos reformulam a imagem (social) construída e reafirmam sua identidade através de estratégias a serem adotadas para sua continuidade étnica nos espaços estabelecidos e outras por estabelecer na construção (visual) da auto-imagem patenteada nos meandros do indigenismo formal, que alimenta uma imagem dos índios como um modelo a ser seguido, e mesmo da antropologia que aborda normalmente a questão indígena mediante métodos de análise levados geralmente a estudar suas relações de parentescos.

É, portanto, fundamental compreender que ser índio hoje é, em diversos contextos, acionar várias identidades juntas, a do pobre, a do negro, a do camponês, entre outras. Acionadas simultaneamente, essas identidades possibilitam a expansão e o aprimoramento da identidade dos índios no processo de ressurgência étnica e suas manifestações. Nestas, vamos encontrar sua parte índia, negra, branca. Vamos encontrar manifestações arquetípicas do índio que assimilou as tradições políticas, sociais, religiosas e culturais do europeu, do africano, das inumeráveis tribos que transitavam pelo território antes e depois de Cabral; dos franceses, holandeses, árabes. Vamos encontrar manifestações e expressões dos cangaceiros, dos coronéis, do paternalismo, do clientelismo, do compadrio e, finalmente, dos povos do Continente Americano contemporâneo, o que nos coloca diante de uma diversidade étnica (indígena) que extrapola nossa concepção (estereotipada) a respeito desses núcleos populacionais no Brasil de hoje. Isso é incontestável. É uma riqueza que devemos considerar.

Suas narrações orais e visuais nos envolvem em eloqüências que especificam o significado próprio do ato e das ações de ressurgir e envolvem processos profundos de restauração e reestruturação étnica e cultural numa política de inserção populacional indígena. Isso coloca em evidência as características da política nacional em direção aos povos indígenas cujas características físicas e culturais nesses 500 anos de ocupação e invasão de seus territórios os envolve em fatalidades históricas e os conecta a uma infinidade de termos de lacunas etnográficas que resultam em elucubrações ideológicas e distorcidas da realidade indígena no Brasil quinhentista e a hesitação do órgão indigenista de atuar em parceria com eles; nesse sentido, espera-se, por meio deste ensaio, uma aproximação e diálogo com esses sujeitos sociais e a sociedade brasileira como um todo.

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[15] É muito comum ouvir destes povos que descendem do  "tronco" Tuxá,  ou "ponta de rama"  Pankararu, entre outros.