A mensagem de uma fotografia jornalística - I Vera Maria B. Calazans de Q. Guimarães[1] |
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Quando pensei em fazer uma análise de uma fotografia, logo veio à minha mente uma imagem que chegou a mim pelo correio eletrônico, sem legenda e nenhuma referência. A fotografia me deixou bastante impressionada. É uma cena com dois elementos, a menina e a ave, mas, para mim, tinha todos os significados do mundo. Via a criança morrendo de inanição, só, e o urubu à sua espreita. Ela falava da morte, mas mais que isso, do descaso humano. Como podem os homens chegar a este ponto! O que me confortou, por um momento, foi a presença de uma pessoa, o fotógrafo. Ao menos ele estava ali. Queria saber a história da foto. Onde tinha acontecido, o que o fotógrafo tinha feito. Aquela cena tinha se cristalizado no papel, gravando a realidade em dado espaço e tempo. Foi o assunto selecionado, a escolha e as ações do fotógrafo, enfim, o processo de construção da representação do fotógrafo - a primeira realidade, ou realidade interior da imagem fotográfica, a história do assunto no passado. Porém, a construção foi a partir do real; desse modo, a fotografia era um documento do real, e a imagem obtida, sua segunda realidade - o assunto representado, o conteúdo explícito da imagem fotográfica. Para decodificá-la deveria conhecer sua história, o processo de criação do fotógrafo, suas intenções. É o que nos ensina Kossoy (1999). Quando iniciei a análise, não tinha, até aquele momento, as referências históricas da fotografia, não sabia quem era o fotógrafo. As pesquisas, até então, eram infrutíferas. O que tinha era, como receptora, uma interpretação da imagem, segundo meus códigos, minhas referências culturais. Porém, como falar da fotografia, das emoções que tinha sentido? Foi Barthes que me ajudou a explicar as impressões causadas pela foto. A análise seria, antes de tudo, minha interação com ela, sensações sentidas como espectador segundo as referências teóricas de Barthes. A história da fotografia e do fotógrafo Da fotografia A fotografia é de uma menina sudanesa, que estava se arrastando em direção a um posto de alimentação. Foi registrada pelo fotógrafo sul-africano Kevin Carter, em 1993.
O Sudão (antiga Núbia), em 1820 tornou-se colônia britânica e em 1899 foi submetido ao domínio egípcio-britânico. Em 1956 obteve a independência. Começou, no sul, a guerrilha do Exército de Libertação do Povo Sudanês (SPLA). Depois de vários golpes, em 1989 tomou o poder o general Omar al-Bashir, que instalou uma ditadura militar. Seu regime foi marcado pela intensificação dos combates e, em 1991, adotou um Código Penal baseado na lei islâmica. Os combates entre a guerrilha do SPLA e o governo islâmico provocaram o êxodo de milhares de pessoas. Cerca de 600 mil refugiados morreram de fome no sul, a 800 km de Cartum, a capital, em 1993[2]. Do fotógrafo Kevin Carter (1961-1994) fazia parte de um grupo de quatro fotógrafos, jovens, de classe média. Os outros três eram: Greg Marinovich, Ken Oosterbroek e João Silva, um moçambicano educado em Portugal. Tinham o apelido de The Bang Bang Club, dado pela imprensa internacional da África do Sul, pois eram destemidos e às vezes extremamente descuidados para conseguir imagens violentas da guerra[3]. A história dos quatro fotojornalistas sul-africanos foi contada no livro The Bang Bang Club[4], por Greg Marinovich, co-assinado por João Silva. Conta a saga do grupo que, diariamente, se dirigia às cidades próximas a Johanesburgo para fotografar a fase mais violenta da luta entre os partidários do ANC (African National Congress) de Nelson Mandela e os do líder zulu Buthelezi, no final do apartheid. As imagens renderam prêmios internacionais e fama aos quatro fotógrafos, porém, com custos emocionais aos dois sobreviventes do grupo, além da morte de Ken Oosterbroek, primeiro sul-africano a ganhar um Pulitzer, ocorrida durante um dos tiroteios, à vista de seus companheiros. Ken faleceu em abril de 1994 e Kevin Carter suicidou-se aos 33 anos, em julho do mesmo ano, asfixiado com os gases do escapamento do carro. Os longos períodos passados em situações extremas e de conflitos dificultaram o convívio social no dia-a-dia. Como conta Greg no livro: "Quando se tenta recebe-se um olhar de incompreensão ou asco. Só conseguimos falar dessas coisas entre nós". Kevin dizia que sofria de depressão e pesadelos. Em 1993, João e Kevin foram ao Sudão cobrir o genocídio de tribos cristãs pelo governo sudanês. João já tinha percorrido a aldeia de Ayud tirando algumas fotos. Kevin percorreu a mesma aldeia e tirou a foto da menina. Disse que estava fotografando uma criança, mudou de ângulo e, de repente, viu o urubu atrás dela. Disse que tinha enxotado o abutre. João já tinha fotografado a mesma menina, mas sem a ave. A fotografia, que foi adquirida pelo New York Times, ganhou o prêmio Pulitzer de 1994, e deu mais resultado do que qualquer outra reportagem para chamar a atenção sobre a fome no continente africano. Porém, levantou a questão que acompanhou o fotógrafo até sua morte. O que ele tinha feito para salvar a criança? Todos queriam saber, e Carter dava diferentes versões. Chegou a declarar, em uma das suas últimas entrevistas, que odiava a foto. A respeito do tipo de trabalho que faziam em campo, Greg, no livro, faz uma reflexão sobre o assunto: "João e eu também vimos muitas crianças morrer à nossa frente, na Somália, e só fotografávamos. Tragédia e violência produzem imagens fortes. Somos pagos para isso. Mas há um preço embutido em cada imagem dessas: um pedaço da emoção, da vulnerabilidade, da empatia que nos torna humanos se perde a cada vez que acionamos o botão da câmera."[5] |
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[1] - Doutoranda em Multimeios, IA/Unicamp
[2] - Fonte: Mulheres negras. Online. Disponível: http://www.catolicanet.com.br/africa [26/05/2003].
[3] - Comentário sobre o livro Bang Bang Club. Online. Disponível: http://digitalfilmmaker.net/Bang/bangbangclub.html [26/05/2003].
[4] - Greg Marinovich e Joao Silva. The Bang Bang Club. Publicado por Basic books: 2000.
[5] - Retirado do artigo de Dorrit Harazim, Abutres ou heróis, publicado em 02 de fev. de 2001. Online. Disponível: http://www.no.com.br [26/05/2003].