Os múltiplos olhares de Christiano Júnior

Marcelo Eduardo Leite*



Vendo a rua da sala de poses: um inventário da escravidão

Em 1832 nasce na Ilha das Flores, arquipélago de Açores, Portugal, José Christiano de Freitas Henriques Júnior. Emigra para o Brasil em 1855, acompanhado de sua esposa e de dois filhos, iniciando a atividade fotográfica por volta de 1860, em Maceió, Alagoas, onde mantém estúdio até 1862. Transfere-se logo depois para o Rio de Janeiro, e em 1863 atua na oficina Photographia do Comércio, à rua São Pedro 69, na qual é sócio de Fernando Antonio de Miranda. Em 1865, está instalado à rua da Quitanda 53, desta feita só. Na sua etapa carioca o que nos chama mais a atenção são os retratos da população cativa da cidade. Realizado no suporte carte de visite,[1] as imagens foram produzidas em dois padrões: "retratos de corpo inteiro" e "bustos". Em algumas das imagens encontramos anotações que acompanham as fotografias e que identificam a nação africana da qual o negro registrado é originário. Isso, a meu ver, demonstra por parte dele uma grande preocupação em evidenciar a diversidade dessa população.

Dentre este material, os "retratos de corpo inteiro", são aqueles nos quais vemos os negros executando os mais diferentes ofícios, típicos dos escravos de ganho: vendedores de frutas, barbeiros, amoladores de facas, entre outros. Essas imagens são vendidas no comércio local e servem como uma espécie de souvenir dos trópicos, sobretudo, útil ao imaginário eurocêntrico que acompanha os viajantes que por aqui passam. Em 1866 o Almanaque Laemmert anuncia a venda de uma "Variada colleção de (...) typos de pretos, cousa muito própria para quem se retira para a Europa"[2]. Tal trabalho indica que Christiano tem uma forte curiosidade "antropológica". Ao registrar os escravos "de ganho", ele os coloca no cerne da modernidade, socializando a imagem das próprias contradições do país. Quando essas fotografias são produzidas, a população de negros escravos que trabalham nas ruas da cidade do Rio de Janeiro é de 55.000 pessoas, 1/3 da população total da capital[3]. Com relação a essas imagens é pertinente frisar que os fotógrafos no final do século XIX vivem uma grande concorrência, estando sempre à procura de novos produtos fotográficos para o mercado.

Nesse sentido, concordo com Sandra Koutsoukos, quando afirma que as fotos dos negros escravos são possuidoras da preocupação de se montar a cena da mesma forma que se faz com as fotografias tiradas dos homens livres. A diferença está no fato de que nas imagens retratando escravos, "[...] os signos que distinguiriam sua classe social (...)" são outros. Além disso, completa a autora, nessas fotografias podemos encontrar indícios da  participação "[...] dos escravos na construção daquele que poderia ser o seu retrato, através de sua indumentária típica (muitos se apresentavam com suas próprias roupas; um acordo com o fotógrafo, com certeza), seus instrumentos de trabalho, suas expressões, seus olhares, suas poses, seus penteados e suas cicatrizes étnicas"[4].

De qualquer forma, essas imagens também se constituem numa mostra de uma modalidade fotográfica muito comum em todo o mundo e de uma atividade profissional regular e que congrega, além da visão comercial e técnica do fotógrafo, a interpretação de sua cultura. Assim, ao analisarmos o teor dessas imagens, é sensato que reconheçamos que o fotógrafo, como um profissional à procura de sua permanência no mercado e atento à sua própria cotidianidade, registre esses personagens tão comuns ao dia-a-dia da sociedade brasileira, com um simples intuito comercial. Podemos dizer ainda que Christiano tem um bom conhecimento a respeito dos trabalhos dos desenhistas e pintores do início do século, já que suas fotografias dialogam de perto com os trabalhos dos artistas atuantes no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX; em particular, toma-se uma simbiose com as aquarelas de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Johann Moritz Rugendas (1802-1858). Isso mostra que o pesquisador, no intuito de refletir sobre o material fotográfico em questão, tem que considerar as mais diversas variantes do processo de produção e divulgação das imagens fotográficas, já que estão em jogo várias motivações que geram a produção imagética.

Tais imagens são feitas em 1866, quando Christiano é proprietário da Galeria Fotográfica e de Pintura onde realiza inúmeros tipos de trabalho. No mesmo ano ele se associa a Bernardo José Pacheco, quando o estabelecimento ganha o nome de Christiano Jr. & Pacheco. Também nesse ano ele ganha a medalha de bronze na Exposição Nacional, realizada no Rio de Janeiro, cidade na qual permanece até 1867, quando parte em direção a Buenos Aires.

Buenos Aires: uma nova forma de ver

Ainda em 1866, Christiano abre seu ateliê na cidade de Mercedes, Uruguai, e em dezembro já esta plenamente instalado na cidade de Buenos Aires, à rua Florida 159. O jornal La Tribuna, em 20 de outubro de 1867, anuncia a sua chegada à cidade.

Na capital da Argentina, o fotógrafo inicia uma maciça produção de retratos. Segundo os pesquisadores argentinos Abel Alexander e Luis Priano, que examinaram álbuns relativos ao seu trabalho, e que estão depositados no Archivo General de la Nación, estima-se que foram produzidos por ele mais de 4.000 retratos entre 1873 e 1875, o que perfaz uma marca de 5 clientes ao dia. Como prova de seu sucesso, temos o fato de ele ter inaugurado um outro ateliê, desta feita, voltado ao público infantil. Denominado Fotografia de La Infância. A casa é, segundo anúncio publicado no jornal La Prensa de 04 de fevereiro de 1875, possuidora de "máquinas instantáneas que permiten sacar retratos de criaturas inquietas y traviesas"[5]. Creio aqui não se tratar apenas de uma questão de se ter novos equipamentos fotográficos, tais como chapas mais sensíveis e máquinas modernas, mas de se possuir condições arquitetônicas favoráveis, necessárias para um bom aproveitamento de luz. O Fotografia de La Infância é destruído por um incêndio em março de 1875. Porém, é reaberto pouco depois, à rua Victoria 296, agora gerenciado por seu filho Jose Virgilio, que anteriormente havia sido seu ajudante.

Ainda no ano de 1875, Christiano torna-se fotógrafo oficial da Sociedade Rural Argentina e realiza sua primeira exposição pela entidade da qual se desliga em 1878. Aos poucos Christiano amadurece a idéia de confeccionar um álbum de vistas e, em 1876, lança o primeiro volume da coleção intitulada Album de Vistas e Costumes de La Argentina. Composto por 16 imagens da cidade de Buenos Aires, o álbum possui textos explicativos em quatro idiomas. É o primeiro trabalho com essas características produzido na Argentina. Seu material é, em parte, formado pelo aproveitamento de vistas anteriormente colocadas à venda em seu ateliê. Christiano júnior nesse trabalho mescla imagens da Argentina colonial e pastoril com as de uma nova nação, representada sobretudo pelas novas construções.

No ano de 1877 é lançado por ele um segundo volume, contando com doze retratos de tipos populares urbanos e com vistas de construções modernas e históricas. No mesmo momento, ele produz uma série que retrata a nova penitenciária da cidade, trabalho que foi vendido de forma avulsa e em álbum encadernado. No ano de 1878 seu estúdio é vendido para Witcomb & Mackern, exatamente quando ele estava vivendo seu melhor momento. Deixa na arquivo do ateliê um acervo de mais de 170 vistas.

A peregrinação: os últimos refúgios do olhar

A opção em largar o ateliê é motivada pelo desejo de continuar a série de álbuns de Vistas e Costumes da República Argentina. O fotógrafo, agora, se atira numa fantástica peregrinação pelas mais variadas regiões do país entre os anos de 1879 e 1883. Passa pelas cidades de Rosário, Córdoba, Río Cuarto, Mendoza, San Juan, San Luis, Catamarca, Tucumán, Salta e Jujuy. Antes de chegar às cidades, anuncia nos jornais locais que ali prestará seus serviços. Monta seu estúdio associado a um fotógrafo local e, em alguns casos, acompanhado de seu  filho. Uma vez instalado na localidade, dá início ao trabalho no ateliê e, paralelamente, desenvolve seu projeto maior: os álbuns de vistas. Sua andança é feita sobre várias mulas, que levam uma parafernália de equipamentos. Seu trajeto e alguns detalhes dessas suas viagens podem ser constatados pelos jornais das cidades por onde passa[6].

As dificuldades financeiras para tocar um projeto tão complexo obrigam-no a pedir ajuda aos governos provinciais das localidades que visita, mas infelizmente, nem sempre é atendido. Desta forma, as dificuldades financeiras atrapalham seus planos. Sua obstinação e sua paixão pela fotografia não são suficientes para a conclusão do trabalho.

No ano de 1883, Christiano desvincula-se de seu último ateliê, desta feita na cidade de Corrientes. Abandona temporariamente a fotografia, dedicando-se a produção e comércio de vinhos e licores, os quais vende ao Brasil, Argentina e Paraguai. Seu envolvimento é tanto com o tema que chega a publicar um livro. Christiano Júnior vem a falecer aos 70 anos de idade, em 19 de novembro de 1902, em Assunção, Paraguai. A revista portenha Caras y Caretas publica uma nota, na qual informa que ele passou seus últimos tempos pintando fotografias. Quando faleceu, esse homem que a tantos emprestou seus olhos estava praticamente sem nenhuma visão. As imagens deixadas no Brasil e na Argentina por Christiano Júnior são um testemunho da sua peculiar forma de ver e, sem dúvida, apresentam-se como uma referência incontornável para a reflexão a respeito da história social da América Latina.

* Mestrando em Sociologia pela UNESP, bolsista FAPESP

[1] As cartes de visite foram desenvolvidas por André Disdéri (1819-1889) na França no ano de 1854. Consistem em cartões fotográficos (9,5 X 4,5 centímetros) feitos em série pelo sistema de lentes múltiplas. Boris KOSSOY. Origens e expansão da fotografia no Brasil - século XIX. Rio de Janeiro: MEC/FUNART, 1980, p. 38.

[2] Jacob GORENDER. In: “A face escrava da corte brasileira”. In: Paulo César de AZEVEDO e Maurício LISSOVSKY. Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. (1864-1866) [et ali.]. São Paulo: Ex. Libris, 1988, p. 31.  

[3] Jacob GORANDER. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1991, p. 93.

[4] Sandra Sofia Machado KOUTSOUKOS. No estúdio do fotógrafo: um estudo da (auto) representação de negros livres e escravos no Brasil da segunda metade do século XIX. Campinas: STUDIUM/IA/UNICAMP, 2002, p. 2.

[5]Alexander ABEL e Luis PRIAMO. “Recordando a Christiano”. In: Un País en Transición – Fotografías de Buenos Aires, Cuyo y el Noroeste. Christiano Júnior 1867 – 1883. Buenos Aires: Ediciones Fundación Antorchas, 2002, p. 23.

[6] Alexander ABEL e Luis PRIAMO. Recordando a Christiano. In: Un País en Transición – Fotografías de Buenos Aires, Cuyo y el Noroeste. Christiano Júnior 1867 – 1883. Buenos Aires: Ediciones Fundación Antorchas, 2002, p. 32-6.